Este romance, nas palavras de sua narradora-arqueóloga, faz uma “escavação fictícia mas séria”. O sítio arqueológico é Osnabrück, cidade alemã em que nasceu sua mãe, e que, ao se tornar escrita, passa a ser onírica em tempos entrecruzados e imagens em movimento. A mãe, Ève Cixous, em solteira Klein, afugentou os fantasmas e fez da vida prática sua morada. Refugiada, renunciou às nacionalidades alemã, francesa e argelina, mas não à língua alemã. Quando lhe perguntavam sua nacionalidade, respondia, sabiamente: “parteira”, para estar junto àqueles que, ainda sem documento, estão à borda da palavra obediente à lei da posse, os recém-nascidos. A filha, narradora, fez dos ossos do tempo e da História um teatro em que os personagens são uma vasta multidão de fantasmas: Osnabrück, Orã, sua cidade natal, o pai de Hamlet, a mãe de Johannes Kepler, Gradiva, Felix Nussbaum, Erich Marie Remarque, Carlos Magno, Hitler.
Se as ruínas da sinagoga de Osnabrück, incendiada em 1938, tornaram-se bem-comportadas, ou seja, prestes a apagar a morte e a destruição, a escrita de Cixous lhe devolve a ferida. O idioma Cixous recusa a monumentalização e, assim, recebe o choque na frase, na sintaxe e no sentido, tanto para recordar o momento único e diferido dos incêndios de 1938, e de alguns outros, quanto para elaborar uma forma para biografias não-escritas, não somente a da mãe, mas também a das “quatrocentos e cinquenta bruxas queimadas vivas ou afogadas” ou a dos “quatrocentos e vinte judeus deportados ou abatidos”.
Se a mãe não escreveu, coube à filha dar à luz a sua história que é também aquela que atravessa o século XX, aquela que herdamos no século XXI, de guerras, diásporas, extermínios. Se, em algum tempo, em Osnabrück, ordenou-se que as mulheres fossem mortas, escrever esses “arquivos de partidas” e “arquivos de chegadas” de uma de suas sobreviventes, é afastá-las de uma segunda morte.
Coube a um tradutor, nada bem-comportado, porque bem experimentado nas errâncias e nas equivocidades das línguas, a ousadia de deixar o idioma Cixous escrever-se à beira do mal-feito, memória do maldito, do que, para não ser escondido, precisa também ser intraduzido. Dizendo o outro, essas ruínas dizem muito sobre nós e encontram as nossas pedras: a no meio do caminho, a de nascença que entranha a alma, a de sujos quintais. É na secrexcitação das ruínas que chega, em um Brasil incendiado, a primeira tradução da dita ficção de Hélène Cixous, contrariando a história monumental e fazendo das chamas um chamado à leitura. Sem demora, podemos passar à escavação fictícia e séria dos rangidos incômodos dessas Ruínas bem-comportadas.
_ texto de orelha Flavia Trocoli