‘CADA PESSOA É UMA RECEITA DE TUDO O QUE VIVEU
E ACUMULOU AO LONGO DA VIDA’
Convidada Letícia Massula
Por Michelle Strzoda
A gastronomia brasileira tem chefs reconhecidos tanto pelo grande público quanto no exterior seja por uma abordagem mais sofisticada ou até mesmo popular. Programas e séries transmitidos por canais de TV, streaming e pelo YouTube foram um catalisador desse interesse crescente pelos hábitos alimentares – sobretudo realities. Em entrevista para o Blog da Relicário, a cozinheira Letícia Massula, que esteve à frente do “Brasil Cookbook”, na BBC, e da série “Prato do Dia”, na Amazon Prime, comenta a ligação com Cora Coralina, como se reconectou com a comida brasileira e manda a letra:
“Quem fala e põe à mesa é uma mulher latina, feminista, de esquerda, encantada pelo Brasil, por suas gentes. É o que sou, é o que sirvo. A mudança social que eu acredito passa necessariamente pelo prato”.
Lá pelos idos de 2006, conheci a designer pernambucana radicada em São Paulo Denize Barros e me apaixonei pelas criações da La Reina Madre. Anos depois ofereci um livro que eu tinha acabado de publicar no Brasil à Denize, A ira das berinjelas: Histórias de paixão e gastronomia indianas, de uma autora que adoro, Bulbul Sharma. Denize me disse que precisava me apresentar uma pessoa que ia pirar nesse livro e, inclusive, iria aproveitá-lo muito mais que ela. Foi assim que conheci a cozinheira Letícia Massula e as invencionices da Cozinha da Matilde.
Você criou a Cozinha da Matilde, hoje também um blog. Na apresentação do blog, há um mapa culinário do Brasil com perfil, digamos, latino e feminista. Isso se reflete nas suas criações?
Letícia Massula: Totalmente, não consigo criar de outra maneira. Cada pessoa é um prato cheio, uma receita de tudo o que viveu e acumulou ao longo da vida. Isso se reflete em tudo, em como pensamos, reagimos, produzimos, não tem como dissociar. As minhas criações contam uma história, partem de um ponto de vista e é isso que quero dizer quando crio, quando escrevo, quando cozinho, são essas as minhas referências. Quem fala e põe à mesa é uma mulher latina, feminista, de esquerda, encantada pelo Brasil, por suas gentes. É o que sou, é o que sirvo.
“Penso, logo como! Um queijo e uma rapadura.” Isso é sua ideia de brasilidade no prato?
LM: Isso é um pouco da minha história, de como me reconectei com a comida brasileira e como ela se apresenta para mim. É um olhar muito pessoal. Mas, antes de chegar ali, teve o processo de sair do direito, da militância feminista e de migrar para a cozinha. Foi só depois de assentar bases na cozinha que me voltei para pensar de que comida eu estava falando. Comecei a viajar pelo Brasil para olhar nossa comida, pensar sobre ela, me conectar com o que está no prato, nos quintais, nas cozinhas. Aprendi a contar tempos e distâncias pelos queijos e rapaduras consumidos para se chegar em algum lugar. De queijo em queijo, de rapadura em rapadura, fui descobrindo um pouco das muitas nuances dessa brasilidade no prato.
Que conexões e leituras lhe vêm à cabeça entre comer, escrever e viver?
LM: Comer, cozinhar e ler para mim andam lado a lado. Junto com a imersão na natureza, são os lugares onde consigo abstrair o mundo. Um universo particular, locais de conforto e intimidade. As conexões, portanto, partem daí, dialogam o tempo todo e como eu acabei me especializando em criar e escrever receitas, meu processo criativo passa de alguma maneira pela literatura. Reminiscências do que li e vivi em algum lugar. Acredito que cozinho como quem escreve e, na hora de escrever, escrevo como quem cozinha. Estou sempre ajustando medidas, sabores, tentando equilibrar o texto. Talvez seja essa a razão de eu ser tão crítica quando escrevo e daí minha dificuldade de publicizar meus escritos – sempre tenho a sensação de estar faltando alguma coisa, um gosto, uma textura.
Em 2020 terminei o livro Outros cantos, da Maria Valéria Resende, junto com Torto arado, que coincidiram com o finalzinho do Último voo do flamingo, do Mia Couto, no mesmo período em que eu estava trabalhando na revisão das receitas do livro das Mulheres Coralinas. Eles conversaram tanto entre si que eu passava de um para o outro como se fossem capítulos de um mesmo livro com narradores diferentes, e as receitas dessa fase foram o puro suco disso tudo. É mais ou menos assim que a coisa anda.
Para você, a comida conta uma história?
LM: Sempre. Antes de qualquer coisa, ela diz sobre nós em um sentido mais amplo, histórico. Como humanidade, somos o resultado de nossas escolhas alimentares, elas seguem nos moldando.
E no sentido específico, cada prato, cada receita, cada comida vem de uma história e conta outra história. Sempre faz uma leitura de tempo, espaço, conjuntura, apresenta personagens. A comida nunca é neutra, ela carrega símbolos e, mesmo quando tenta essa neutralidade, só essa tentativa já conta de onde ela vem e por que está ali, naquele prato, naquela mesa, naquela casa.
“Já na primeira parada, subindo o rio, na aldeia Matrinchã, depois da aplicação ritualística do rapé à beira da lagoa, começamos uma conversa com os alunos de medicina tradicional que nos acompanhavam e que agora mostravam a ‘biblioteca’ de plantas medicinais que estavam criando na área, através do manejo de culturas.
[…]
E naquela noite, quando fui dormir depois de tomar o Uni pelas mãos do Tatá, que rezou pra que sonhássemos respostas, sonhei com as duas cozinheiras que mais marcaram a minha vida, as que eu seguia por toda parte durante a infância, como se fosse um rabinho, sempre encantada com cada ensinamento, desde as claras que em ponto de neve que não se soltavam do fundo da bacia, ao açúcar queimado pra dar mais gosto ao arroz doce. Maria e Yolanda, meus livros favoritos.”
Nesses trechos de uma crônica sua no blog, você cita duas personagens como livros. E antes faz uma referência a si mesma: “[…] cruzei a aldeia de peito estufado, toda pimpona, me sentindo um livrinho bacaninha”. Esse “jogo” com o lugar e a acepção de biblioteca e livro que você sugere no texto tem a ver com a cozinha que te encanta, que você busca?
LM: É uma parte importante dela, foi como eu aprendi a cozinhar, uma cozinha que quase não tem registro físico, é privada, transmitida oralmente. É um saber que demanda intimidade, atenção, que se acumula ao longo do tempo, sem pressa. É um outro tipo de leitura, de registro.
É o que eu busco quando coloco o pé na estrada e mesmo aqui no meu contexto, com as pessoas com quem trabalho, da cadeia produtiva da comida. Vou atrás desses causos, dessas sabedorias, que, na maior parte das vezes, não têm outro registro que não seja a memória de quem estava ali. Coleciono essas histórias, esses causos, para compor um mosaico e responder minhas indagações.
Você publicou um relato detalhado na ocasião em que fez o Caminho de Cora Coralina. A poeta mesmo não chegou a percorrer essa trilha. É leitora de Cora Coralina? Como goiana, o que mudou para você depois de realizar essa experiência? O que mais a deixou impactada?
LM: Sou leitora de Cora e tive a alegria de conhecê-la na infância. A cidade de Goiás era rota e parada dos meus pais na época em que morávamos no Araguaia. Cora não fez o caminho em si – o trajeto é uma homenagem e termina em sua casa às margens do rio Vermelho. Mas a sua vida foi feita de muitos caminhos, como o que ela pegou na calada da noite, deixando Goiás para viver seu amor proibido. Os muitos lugares por onde ela passou e viveu até voltar à Casa da Ponte.
Pessoalmente, não tem como não me identificar, não me envolver. Também saí de Goiás, também voltei. Estar ali foi como completar um ciclo. Durante os 150 quilômetros que caminhamos levei ela comigo, foi companheira, conversamos. Repeti como oração um poema especialmente, que fala de recomeços, de remover pedras, plantar rosas, fazer doces. E que recomenda: faz da tua vida mesquinha um poema. Sigo tentando.
Se você pudesse oferecer uma refeição para alguém hoje, junto com um livro, qual e para quem seria?
LM: Nesse momento de tanta dor, gostaria de cozinhar para amenizar dores. Gostaria de cozinhar para cada mãe periférica que viveu a dor de perder um filho para a violência de estado, para o descaso. Para essas mulheres que viveram o revés do parto. Queria poder abraçar e cozinhar a comida preferida de cada uma delas, como um dia elas cozinharam a comida preferida dos filhos que perderam. Representando todas elas, Mirtes, mãe do Miguel. Essa dor imensurável de Mirtes me acompanhou durante 2020, que por si só já foi um ano duro. A todo momento, ela me vem à mente, refaço os passos dela, do Miguel, tento evitar o que não deveria ter acontecido. Para Mirtes eu gostaria de fazer uma comida de alma, como chamava a Nina Horta: mingaus, sopas, caldos. Comidas que aquecem, confortam, como um abraço. Eu ofereceria um mungunzá salgado, servido com carne de sol, temperado com coentro e pimenta de cheiro. De sobremesa, mingau de tapioca com coco e folha de limão, salpicado de flor de jambo – um pequeno agrado.
Vejo Mirtes e cada uma dessas mães em Kehinde, protagonista de Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves. O livro conta sua história desde a África, enquanto busca pelo filho que lhe foi tirado. Um relato que conta o que foi a escravização no Brasil, sob o ponto e vista de uma mulher escravizada (e escrito também por uma mulher negra). Pontilhado por descrições sobre a riqueza cultural e intelectual que os povos africanos trouxeram na bagagem e sua relevante contribuição para o que hoje chamamos de brasilidade. Uma história de resgate, tão importante para desfazer esse novelo de erros que seguem refletindo nosso presente e futuro e que continua fazendo vitimas como Miguel.
A transformação social pode ocorrer, por exemplo, a partir de ações de inclusão, combate ao desperdício e diversidade. Como você vê isso envolvendo livros e cozinha?
LM: A comida, a cozinha, a produção de alimentos e nossas decisões alimentares moldam nosso modo de viver. E cada dia mais tem se conformado em um perverso ciclo. Historicamente, desde a invasão portuguesa, o Brasil foi empurrado a um modo de produção que devasta o ambiente e expurga comunidades e povos tradicionais. É um modelo que produz commodities, e não comida. O problema é antigo, basta olhar as inúmeras leis desde a colônia obrigando a produção de um percentual mínimo de comida ao lado da monocultura. Esse modelo, quando devasta biomas, empurra as comunidades tradicionais para as margens de grandes centros. E ali, privadas de seu modo de viver, de seus conhecimentos tradicionais, elas são realocadas em trabalhos precários, moradias precárias e são alimentadas com a outra ponta da cadeia, que utiliza essa mesma produção de commodities, para produzir alimentos superprocessados, de baixa qualidade, carregados de resíduos dos químicos utilizados para a produção em larga escala e, é claro, com inúmeros reflexos sociais, políticos, econômicos e, sobretudo, de saúde pública. Repensar esse modelo, produzir conteúdo, se somar a fóruns e grupos que estudam modos de produção e fiscalizam os avanços do agronegócio e da indústria de alimentos é uma pauta urgente. A mudança social que eu acredito passa necessariamente pelo prato.
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‘CADA PESSOA É UMA RECEITA DE TUDO O QUE VIVEU
E ACUMULOU AO LONGO DA VIDA’
Convidada Letícia Massula
Por Michelle Strzoda
A gastronomia brasileira tem chefs reconhecidos tanto pelo grande público quanto no exterior seja por uma abordagem mais sofisticada ou até mesmo popular. Programas e séries transmitidos por canais de TV, streaming e pelo YouTube foram um catalisador desse interesse crescente pelos hábitos alimentares – sobretudo realities. Em entrevista para o Blog da Relicário, a cozinheira Letícia Massula, que esteve à frente do “Brasil Cookbook”, na BBC, e da série “Prato do Dia”, na Amazon Prime, comenta a ligação com Cora Coralina, como se reconectou com a comida brasileira e manda a letra:
“Quem fala e põe à mesa é uma mulher latina, feminista, de esquerda, encantada pelo Brasil, por suas gentes. É o que sou, é o que sirvo. A mudança social que eu acredito passa necessariamente pelo prato”.
Lá pelos idos de 2006, conheci a designer pernambucana radicada em São Paulo Denize Barros e me apaixonei pelas criações da La Reina Madre. Anos depois ofereci um livro que eu tinha acabado de publicar no Brasil à Denize, A ira das berinjelas: Histórias de paixão e gastronomia indianas, de uma autora que adoro, Bulbul Sharma. Denize me disse que precisava me apresentar uma pessoa que ia pirar nesse livro e, inclusive, iria aproveitá-lo muito mais que ela. Foi assim que conheci a cozinheira Letícia Massula e as invencionices da Cozinha da Matilde.
Você criou a Cozinha da Matilde, hoje também um blog. Na apresentação do blog, há um mapa culinário do Brasil com perfil, digamos, latino e feminista. Isso se reflete nas suas criações?
Letícia Massula: Totalmente, não consigo criar de outra maneira. Cada pessoa é um prato cheio, uma receita de tudo o que viveu e acumulou ao longo da vida. Isso se reflete em tudo, em como pensamos, reagimos, produzimos, não tem como dissociar. As minhas criações contam uma história, partem de um ponto de vista e é isso que quero dizer quando crio, quando escrevo, quando cozinho, são essas as minhas referências. Quem fala e põe à mesa é uma mulher latina, feminista, de esquerda, encantada pelo Brasil, por suas gentes. É o que sou, é o que sirvo.
“Penso, logo como! Um queijo e uma rapadura.” Isso é sua ideia de brasilidade no prato?
LM: Isso é um pouco da minha história, de como me reconectei com a comida brasileira e como ela se apresenta para mim. É um olhar muito pessoal. Mas, antes de chegar ali, teve o processo de sair do direito, da militância feminista e de migrar para a cozinha. Foi só depois de assentar bases na cozinha que me voltei para pensar de que comida eu estava falando. Comecei a viajar pelo Brasil para olhar nossa comida, pensar sobre ela, me conectar com o que está no prato, nos quintais, nas cozinhas. Aprendi a contar tempos e distâncias pelos queijos e rapaduras consumidos para se chegar em algum lugar. De queijo em queijo, de rapadura em rapadura, fui descobrindo um pouco das muitas nuances dessa brasilidade no prato.
Que conexões e leituras lhe vêm à cabeça entre comer, escrever e viver?
LM: Comer, cozinhar e ler para mim andam lado a lado. Junto com a imersão na natureza, são os lugares onde consigo abstrair o mundo. Um universo particular, locais de conforto e intimidade. As conexões, portanto, partem daí, dialogam o tempo todo e como eu acabei me especializando em criar e escrever receitas, meu processo criativo passa de alguma maneira pela literatura. Reminiscências do que li e vivi em algum lugar. Acredito que cozinho como quem escreve e, na hora de escrever, escrevo como quem cozinha. Estou sempre ajustando medidas, sabores, tentando equilibrar o texto. Talvez seja essa a razão de eu ser tão crítica quando escrevo e daí minha dificuldade de publicizar meus escritos – sempre tenho a sensação de estar faltando alguma coisa, um gosto, uma textura.
Em 2020 terminei o livro Outros cantos, da Maria Valéria Resende, junto com Torto arado, que coincidiram com o finalzinho do Último voo do flamingo, do Mia Couto, no mesmo período em que eu estava trabalhando na revisão das receitas do livro das Mulheres Coralinas. Eles conversaram tanto entre si que eu passava de um para o outro como se fossem capítulos de um mesmo livro com narradores diferentes, e as receitas dessa fase foram o puro suco disso tudo. É mais ou menos assim que a coisa anda.
Para você, a comida conta uma história?
LM: Sempre. Antes de qualquer coisa, ela diz sobre nós em um sentido mais amplo, histórico. Como humanidade, somos o resultado de nossas escolhas alimentares, elas seguem nos moldando.
E no sentido específico, cada prato, cada receita, cada comida vem de uma história e conta outra história. Sempre faz uma leitura de tempo, espaço, conjuntura, apresenta personagens. A comida nunca é neutra, ela carrega símbolos e, mesmo quando tenta essa neutralidade, só essa tentativa já conta de onde ela vem e por que está ali, naquele prato, naquela mesa, naquela casa.
“Já na primeira parada, subindo o rio, na aldeia Matrinchã, depois da aplicação ritualística do rapé à beira da lagoa, começamos uma conversa com os alunos de medicina tradicional que nos acompanhavam e que agora mostravam a ‘biblioteca’ de plantas medicinais que estavam criando na área, através do manejo de culturas.
[…]
E naquela noite, quando fui dormir depois de tomar o Uni pelas mãos do Tatá, que rezou pra que sonhássemos respostas, sonhei com as duas cozinheiras que mais marcaram a minha vida, as que eu seguia por toda parte durante a infância, como se fosse um rabinho, sempre encantada com cada ensinamento, desde as claras que em ponto de neve que não se soltavam do fundo da bacia, ao açúcar queimado pra dar mais gosto ao arroz doce. Maria e Yolanda, meus livros favoritos.”
Nesses trechos de uma crônica sua no blog, você cita duas personagens como livros. E antes faz uma referência a si mesma: “[…] cruzei a aldeia de peito estufado, toda pimpona, me sentindo um livrinho bacaninha”. Esse “jogo” com o lugar e a acepção de biblioteca e livro que você sugere no texto tem a ver com a cozinha que te encanta, que você busca?
LM: É uma parte importante dela, foi como eu aprendi a cozinhar, uma cozinha que quase não tem registro físico, é privada, transmitida oralmente. É um saber que demanda intimidade, atenção, que se acumula ao longo do tempo, sem pressa. É um outro tipo de leitura, de registro.
É o que eu busco quando coloco o pé na estrada e mesmo aqui no meu contexto, com as pessoas com quem trabalho, da cadeia produtiva da comida. Vou atrás desses causos, dessas sabedorias, que, na maior parte das vezes, não têm outro registro que não seja a memória de quem estava ali. Coleciono essas histórias, esses causos, para compor um mosaico e responder minhas indagações.
Você publicou um relato detalhado na ocasião em que fez o Caminho de Cora Coralina. A poeta mesmo não chegou a percorrer essa trilha. É leitora de Cora Coralina? Como goiana, o que mudou para você depois de realizar essa experiência? O que mais a deixou impactada?
LM: Sou leitora de Cora e tive a alegria de conhecê-la na infância. A cidade de Goiás era rota e parada dos meus pais na época em que morávamos no Araguaia. Cora não fez o caminho em si – o trajeto é uma homenagem e termina em sua casa às margens do rio Vermelho. Mas a sua vida foi feita de muitos caminhos, como o que ela pegou na calada da noite, deixando Goiás para viver seu amor proibido. Os muitos lugares por onde ela passou e viveu até voltar à Casa da Ponte.
Pessoalmente, não tem como não me identificar, não me envolver. Também saí de Goiás, também voltei. Estar ali foi como completar um ciclo. Durante os 150 quilômetros que caminhamos levei ela comigo, foi companheira, conversamos. Repeti como oração um poema especialmente, que fala de recomeços, de remover pedras, plantar rosas, fazer doces. E que recomenda: faz da tua vida mesquinha um poema. Sigo tentando.
Se você pudesse oferecer uma refeição para alguém hoje, junto com um livro, qual e para quem seria?
LM: Nesse momento de tanta dor, gostaria de cozinhar para amenizar dores. Gostaria de cozinhar para cada mãe periférica que viveu a dor de perder um filho para a violência de estado, para o descaso. Para essas mulheres que viveram o revés do parto. Queria poder abraçar e cozinhar a comida preferida de cada uma delas, como um dia elas cozinharam a comida preferida dos filhos que perderam. Representando todas elas, Mirtes, mãe do Miguel. Essa dor imensurável de Mirtes me acompanhou durante 2020, que por si só já foi um ano duro. A todo momento, ela me vem à mente, refaço os passos dela, do Miguel, tento evitar o que não deveria ter acontecido. Para Mirtes eu gostaria de fazer uma comida de alma, como chamava a Nina Horta: mingaus, sopas, caldos. Comidas que aquecem, confortam, como um abraço. Eu ofereceria um mungunzá salgado, servido com carne de sol, temperado com coentro e pimenta de cheiro. De sobremesa, mingau de tapioca com coco e folha de limão, salpicado de flor de jambo – um pequeno agrado.
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