“A ESCRITA SURGIU PARA MIM COMO FORMA DE ENTENDER MUTAÇÕES, MAS COMO ELA TEM UMA LÓGICA PRÓPRIA, FOI ME LEVANDO PARA OUTROS CAMINHOS”
Convidada Flávia Péret
Entrevista por Michelle Strzoda
“Sigo em busca de uma imagem síntese que traduza com exatidão a essência luminosa e desafiadora da avó”, escreve Flávia Péret para dar um sentido ao que acontece nas páginas de Coisas presentes demais.
O que se perde quando se perde a memória? Essa pergunta, aparentemente óbvia, assombra a escrita do novo livro da autora mineira Flávia Péret.
Frente ao progressivo esquecimento da avó – figura enigmática e exuberante, agora em processo de apagamento pela doença de Alzheimer –, uma neta entra num intenso estado de rememoração, mas a escrita, como gesto que tenta salvar aquilo que começa a se desfazer, traz, também, o inesperado. Em Coisas presentes demais, a narradora se aproxima da avó por meio de fragmentos de memória, imagens, gestos e silêncios. Entre visitas à casa de repouso e lembranças de infância, nasce uma narrativa em mosaicos marcada pela delicadeza e pela investigação do olhar: o da avó sobre a neta, o da neta sobre a avó, e o da mulher que a narradora se torna ao revisitar essa relação. Uma reflexão profunda sobre a memória, a herança e o amor.
Junto a um excelente time de convidadas, Flávia lança em 25 de julho, Dia da Escritora e do Escritor, o primeiro evento de lançamento do livro, em Belo Horizonte, na Livraria Quixote.
Relicário: Seu livro aborda a complexidade das relações humanas e a presença constante do passado. Poderia nos contar o que a inspirou a explorar esses temas em Coisas presentes demais?
Flávia Péret: O evento desencadeador foi a destruição da horta da minha avó materna, um espaço grande localizado nos fundos da casa dela, em Mariana, Minas Gerais. Num acesso de raiva e loucura, já que, naquele momento, foi assim que nós da família interpretamos o seu gesto, minha avó destruiu décadas de dedicação e trabalho. Quando recebi a notícia, fiquei completamente atordoada. Eu não conseguia acreditar que alguém era capaz de destruir algo que tanto amava, que ela construiu sozinha com tanta dedicação. Era como se, de repente, eu pedisse a alguém para pegar todos os meus livros e jogar fora, destruí-los. Minha avó sempre teve uma personalidade difícil, muito voluntariosa e autoritária, mas aquele ato estava fora de qualquer tentativa de explicação. Dias depois do acontecido, comecei a escrever. Eu queria entender que pessoa era aquela – minha avó –, porque a sensação que eu sentia era de que eu não a conhecia mais nem nunca a compreendi. Só quando enfim aceitei o diagnóstico do Alzheimer, meses depois, é que entendi que aquela mulher de fato estava se transformando em outra pessoa. Ela era e não era minha avó. A escrita surgiu, então, como forma de entender essas mutações, mas como a escrita sempre tem sua lógica própria, ela foi me levando para outros caminhos desconhecidos.
Relicário: A narrativa do livro parece transitar entre diferentes temporalidades e memórias. Como foi o processo de construção dessa estrutura textual? Quais desafios enfrentou para tecer esses fios temporais de forma coesa?
FP: Sempre bom ler/ouvir que os fios temporais foram tecidos de forma coesa… enquanto estou escrevendo, montando os fragmentos sinto que tudo é embaralhado, inconsciente e confuso. Quando a escrita começou a avançar e fui me dando conta de que não queria apenas entender o episódio da destruição da horta, e sim a personalidade da avó, comecei a juntar memórias de diferentes temporalidades: de quando eu era criança e também mais atuais, além de memórias de um tempo em que eu ainda não existia (minha avó criança, recém-casada). As memórias mais antigas foram construídas a partir de conversas com um tio e também da permissão que me concedi de ficcionalizar vazios que a memória não consegue chegar, mas a imaginação sim. A decisão de escrever por fragmentos não responde apenas à necessidade de retratar algo que por si só é incompleto e despedaçado (como a memória), mas também me conceder mais liberdade para fazer todas essas sobreposições de tempo, como uma costura dos retalhos. Ao contrário de histórias lineares, o fragmento, pela sua natureza ambivalente – ao mesmo tempo que é redondo e fechado em si mesmo como um casulo –, é aberto as influências e combinações da montagem. É, portanto, mais próximo de como sinto o as histórias e o tempo.
Relicário: Os personagens de Coisas presentes demais parecem carregar um peso emocional. Há alguma técnica ou abordagem que você utiliza para desenvolver a profundidade psicológica de seus personagens?
FP: Quando escrevo, estou tão imersa na história que quero construir, por isso nem penso em técnicas narrativas. Mas a teoria está me rondando a todo o tempo, até porque sou professora de criação literária e este é um tema que me interessa. Com frequência, falo com meus alunos que um bom personagem é aquele que tem contrastes. É tarefa de quem escreve observar e produzir esses contrastes. Sem isso não há densidade psicológica possível. É como se nós, leitores, estivéssemos espiando pelo buraco da fechadura a alma atormentada de um ser humano, como se percebêssemos o que ele mesmo não percebe sobre si. A personagem da avó – que é e não é minha avó real – tem essa complexidade. Ela é determinada, vaidosa, mandona, autoritária, mas também engraçada, ingênua, carinhosa – características que, sobrepostas, criam uma figura humana complexa. E é isso que me interessa na literatura, lidar com ambiguidades.
Relicário: O título Coisas presentes demais sugere certa onipresença de elementos que talvez preferiríamos deixar para trás. Qual a sua interpretação pessoal sobre o que seriam essas “coisas presentes demais”? Como elas se manifestam em seus personagens?
FP: No livro há muitas coisas “presentes demais”, como a doença. Sobretudo quando nem todos os familiares aceitavam o diagnóstico do Alzheimer e algumas pessoas (entre as quais me incluo) até negavam. Outra coisa é a própria memória. Quando de fato entrei na escrita, eu só pensava na minha avó, me lembrava dela, as memórias começam a aparecer de modo muito intenso, tornam-se “presentes demais”. A vaidade da avó era “presente demais” na vida dela e, pensando na neta/narradora, a própria escrita (o desejo de escrever e o conseguir escrever) também era “presente demais”.
Relicário: Que leitura mais te impactou até hoje?
FP: Ao longo da vida, esse impacto vai se transformando. Muitos livros me impactaram e continuam impactando, como Água viva (Clarice Lispector), Fluxo e floema (Hilda Hilst), A insustentável leveza do ser (Milan Kundera), A teus pés (Ana Cristina César), Demian (Herman Hesse) e, mais recentemente, Argonautas (Maggie Nelson), além de absolutamente todos os livros da Anne Carson.
No livro há muitas coisas “presentes demais”, como a doença. Outra coisa é a própria memória. Quando de fato entrei na escrita, eu só pensava na minha avó, as memórias começam a aparecer, tornam-se “presentes demais”. A vaidade da avó era “presente demais” e, pensando na neta/narradora, a própria escrita também era “presente demais”.
Relicário: A escrita é, muitas vezes, um reflexo da vida cotidiana. Houve alguma experiência pessoal ou observação que a levou a refletir sobre os temas de memória, ausência e presença que permeiam sua obra?
FP: A memória é, de fato, um tema fascinante. Cada vez mais percebo que memória é uma mistura de sonho e realidade, de invenção e experiência. Tanto sua aquisição como sua perda. Os dois eventos mais importantes da vida de qualquer pessoa, o nascimento e a morte, estão, no entanto, fora do campo da memória. Isso é paradoxal, misterioso. Não nos lembramos do nosso nascimento, não iremos nos lembrar da nossa morte, contudo seguimos fabricando e esquecendo memórias. Me pego pensando, por exemplo, em quais memórias meu filho de 10 anos guardará da fase atual da vida dele. Em janeiro fomos para a praia e vivemos dias perfeitos – sol, mar, banho de rio… –, ele provou arraia pela primeira vez, mas no futuro talvez lembre apenas que, ao voltar para a casa aonde estávamos, ele assistia a episódios de “Naruto”. Coisas presentes demais é meu segundo livro sobre a memória e já escrevi um terceiro. Das minhas leituras mais recentes que têm conexão com a memória o livro Voyager, da chilena Nona Fernández, fala uma coisa fantástica: a mãe dela estava sofrendo uns desmaios súbitos e inexplicáveis. Depois que retomava a consciência, não conseguia se lembrar do que estava fazendo ou onde estava antes do desmaio acontecer. Levaram-na ao médico, que solicitou um uma espécie de ressonância do cérebro para compreender aqueles “apagões”. Fernández acompanhou a mãe ao exame e conta que, depois que colaram dezenas de fios e plaquinhas na cabeça dela, o médico solicitou que ela se lembrasse de um momento feliz – enquanto isso a movimentação cerebral da paciente era projetada num pequeno monitor. De repente, áreas inteiras, como ilhas ou constelações de estrelas do cérebro da mãe, literalmente se iluminaram, a lembrança produz uma eletricidade nos neurônios, refletindo um clarão. É como se a metáfora – a lembrança como a luz (ou o esquecimento como a escuridão) – fosse real, verdadeira. Nosso cérebro se ilumina quando lembramos de algo bom. Depois que o exame acabou, no caminho para casa, a filha perguntou à mãe: naquele momento em que o médico pediu para você se lembrar de algo bom, do que você se lembrou? E a mãe respondeu: do seu nascimento.
Relicário: Quais autores/as ou obras literárias a influenciaram na sua formação como escritora, mais especificamente na concepção de Coisas presentes demais?
FP: Situo Coisas presentes demais como “literatura microquimérica”, um conceito criado pela escritora mexicana Jazmina Barrera e que diz respeito a esses livros que, assim como a Quimera, o monstro da mitologia grega, é feito de partes de diversos outros bichos, um ser heterogêneo. Este livro é uma mistura intensa de muitos outros. No processo de edição, fui deixando muita coisa pra trás para focar na história. Esses livros a seguir me foram cruciais: O eco da minha mãe, de Tamara Kamenszain, que fala sobre o Alzheimer da mãe dela; Desarticulações, da também autora argentina Sylvia Molloy, um livro em fragmentos, quase um diário, em que Molloy acompanha o adoecimento de uma amiga, também acometida pelo Alzhiemer; e, por fim, os artigos da Daniela Feriani, uma antropóloga brasileira que pesquisa a doença de Alzheimer há tempos. O trabalho de Feriani proporcionou a mim uma visão inédita. Ao entender a doença como um processo de mutação e questionar a primazia na razão (logo, da lucidez) na constituição daquilo que costumamos chamar “pessoa”. A pesquisa dela me ajudou a entender (e aceitar) que as mutações provocadas pelo Alzheimer não tornam quem é acometido pela doença “menos” pessoa. A doença pode esclarecer o que convencionamos chamar de “pessoa” (a partir do cogito cartesiano: penso, logo existo) e como é possível ampliar esse entendimento.
Relicário: No seu livro, vemos a relação da narradora, uma neta, com sua avó acometida pelo Alzheimer. Se você tivesse o poder de esquecer algo na vida, o que gostaria? E o que gostaria de eternizar?
FP: Gostaria de esquecer todas as cenas de dor e de trauma que pessoas que eu amo já viveram, além das minhas próprias. Meu pai, inconsciente e entubando na UTI de um hospital; meu filho, quando o pezinho dele entrou na roda da bicicleta e ele urrou de dor, um acidente de ônibus que sofri, anos atrás. Toda vez que estou numa estrada, a cena do ônibus capotando volta. Já as cenas que gostaria de eternizar são muitas. Sou nostálgica, me lembro dos cheiros dos lugares, da sensação no corpo. Meu filho boiando num rio na Bahia e sua carinha de felicidade; uma das últimas conversas que tive com meu pai, em que ele já estava bem fraco e me pediu ajuda para escrever uma lista de compras – ele teve uma crise de riso por causa de um comentário bobo que fiz. Sempre o riso, esse movimento lento que se abre no rosto das pessoas que amamos, iluminando meus neurônios é o que eu gostaria de salvar do esquecimento. Por isso é que escrevo. A escrita salva.
Nascida em Ouro Preto no ano de 1978, Flávia Péret é escritora, pesquisadora e professora de criação literária. Publicou, entre outros, Imprensa Gay no Brasil, 10 Poemas de Amor e de Susto, Outra Noite, Novelinha, Uma Mulher, Os Patos, Mulher-Bomba, além de Instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças. Em 2018, recebeu o prêmio Jean-Jacques Rousseau, da Akademie Schloss Solitude (Alemanha) pelo projeto “Uma Mulher” (livro e site de escrita expandida). Em 2010, venceu o prêmio Memória do Jornalismo Brasileiro, promovido pela Folha de S.Paulo.
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Flávia Péret: O evento desencadeador foi a destruição da horta da minha avó materna, um espaço grande localizado nos fundos da casa dela, em Mariana, Minas Gerais. Num acesso de raiva e loucura, já que, naquele momento, foi assim que nós da família interpretamos o seu gesto, minha avó destruiu décadas de dedicação e trabalho. Quando recebi a notícia, fiquei completamente atordoada. Eu não conseguia acreditar que alguém era capaz de destruir algo que tanto amava, que ela construiu sozinha com tanta dedicação. Era como se, de repente, eu pedisse a alguém para pegar todos os meus livros e jogar fora, destruí-los. Minha avó sempre teve uma personalidade difícil, muito voluntariosa e autoritária, mas aquele ato estava fora de qualquer tentativa de explicação. Dias depois do acontecido, comecei a escrever. Eu queria entender que pessoa era aquela – minha avó –, porque a sensação que eu sentia era de que eu não a conhecia mais nem nunca a compreendi. Só quando enfim aceitei o diagnóstico do Alzheimer, meses depois, é que entendi que aquela mulher de fato estava se transformando em outra pessoa. Ela era e não era minha avó. A escrita surgiu, então, como forma de entender essas mutações, mas como a escrita sempre tem sua lógica própria, ela foi me levando para outros caminhos desconhecidos.
Relicário: A narrativa do livro parece transitar entre diferentes temporalidades e memórias. Como foi o processo de construção dessa estrutura textual? Quais desafios enfrentou para tecer esses fios temporais de forma coesa?
FP: Sempre bom ler/ouvir que os fios temporais foram tecidos de forma coesa… enquanto estou escrevendo, montando os fragmentos sinto que tudo é embaralhado, inconsciente e confuso. Quando a escrita começou a avançar e fui me dando conta de que não queria apenas entender o episódio da destruição da horta, e sim a personalidade da avó, comecei a juntar memórias de diferentes temporalidades: de quando eu era criança e também mais atuais, além de memórias de um tempo em que eu ainda não existia (minha avó criança, recém-casada). As memórias mais antigas foram construídas a partir de conversas com um tio e também da permissão que me concedi de ficcionalizar vazios que a memória não consegue chegar, mas a imaginação sim. A decisão de escrever por fragmentos não responde apenas à necessidade de retratar algo que por si só é incompleto e despedaçado (como a memória), mas também me conceder mais liberdade para fazer todas essas sobreposições de tempo, como uma costura dos retalhos. Ao contrário de histórias lineares, o fragmento, pela sua natureza ambivalente – ao mesmo tempo que é redondo e fechado em si mesmo como um casulo –, é aberto as influências e combinações da montagem. É, portanto, mais próximo de como sinto o as histórias e o tempo.
Relicário: Os personagens de Coisas presentes demais parecem carregar um peso emocional. Há alguma técnica ou abordagem que você utiliza para desenvolver a profundidade psicológica de seus personagens?
FP: Quando escrevo, estou tão imersa na história que quero construir, por isso nem penso em técnicas narrativas. Mas a teoria está me rondando a todo o tempo, até porque sou professora de criação literária e este é um tema que me interessa. Com frequência, falo com meus alunos que um bom personagem é aquele que tem contrastes. É tarefa de quem escreve observar e produzir esses contrastes. Sem isso não há densidade psicológica possível. É como se nós, leitores, estivéssemos espiando pelo buraco da fechadura a alma atormentada de um ser humano, como se percebêssemos o que ele mesmo não percebe sobre si. A personagem da avó – que é e não é minha avó real – tem essa complexidade. Ela é determinada, vaidosa, mandona, autoritária, mas também engraçada, ingênua, carinhosa – características que, sobrepostas, criam uma figura humana complexa. E é isso que me interessa na literatura, lidar com ambiguidades.
Relicário: O título Coisas presentes demais sugere certa onipresença de elementos que talvez preferiríamos deixar para trás. Qual a sua interpretação pessoal sobre o que seriam essas “coisas presentes demais”? Como elas se manifestam em seus personagens?
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Relicário: Que leitura mais te impactou até hoje?
FP: Ao longo da vida, esse impacto vai se transformando. Muitos livros me impactaram e continuam impactando, como Água viva (Clarice Lispector), Fluxo e floema (Hilda Hilst), A insustentável leveza do ser (Milan Kundera), A teus pés (Ana Cristina César), Demian (Herman Hesse) e, mais recentemente, Argonautas (Maggie Nelson), além de absolutamente todos os livros da Anne Carson.
Relicário: A escrita é, muitas vezes, um reflexo da vida cotidiana. Houve alguma experiência pessoal ou observação que a levou a refletir sobre os temas de memória, ausência e presença que permeiam sua obra?
FP: A memória é, de fato, um tema fascinante. Cada vez mais percebo que memória é uma mistura de sonho e realidade, de invenção e experiência. Tanto sua aquisição como sua perda. Os dois eventos mais importantes da vida de qualquer pessoa, o nascimento e a morte, estão, no entanto, fora do campo da memória. Isso é paradoxal, misterioso. Não nos lembramos do nosso nascimento, não iremos nos lembrar da nossa morte, contudo seguimos fabricando e esquecendo memórias. Me pego pensando, por exemplo, em quais memórias meu filho de 10 anos guardará da fase atual da vida dele. Em janeiro fomos para a praia e vivemos dias perfeitos – sol, mar, banho de rio… –, ele provou arraia pela primeira vez, mas no futuro talvez lembre apenas que, ao voltar para a casa aonde estávamos, ele assistia a episódios de “Naruto”. Coisas presentes demais é meu segundo livro sobre a memória e já escrevi um terceiro. Das minhas leituras mais recentes que têm conexão com a memória o livro Voyager, da chilena Nona Fernández, fala uma coisa fantástica: a mãe dela estava sofrendo uns desmaios súbitos e inexplicáveis. Depois que retomava a consciência, não conseguia se lembrar do que estava fazendo ou onde estava antes do desmaio acontecer. Levaram-na ao médico, que solicitou um uma espécie de ressonância do cérebro para compreender aqueles “apagões”. Fernández acompanhou a mãe ao exame e conta que, depois que colaram dezenas de fios e plaquinhas na cabeça dela, o médico solicitou que ela se lembrasse de um momento feliz – enquanto isso a movimentação cerebral da paciente era projetada num pequeno monitor. De repente, áreas inteiras, como ilhas ou constelações de estrelas do cérebro da mãe, literalmente se iluminaram, a lembrança produz uma eletricidade nos neurônios, refletindo um clarão. É como se a metáfora – a lembrança como a luz (ou o esquecimento como a escuridão) – fosse real, verdadeira. Nosso cérebro se ilumina quando lembramos de algo bom. Depois que o exame acabou, no caminho para casa, a filha perguntou à mãe: naquele momento em que o médico pediu para você se lembrar de algo bom, do que você se lembrou? E a mãe respondeu: do seu nascimento.
Relicário: Quais autores/as ou obras literárias a influenciaram na sua formação como escritora, mais especificamente na concepção de Coisas presentes demais?
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Relicário: No seu livro, vemos a relação da narradora, uma neta, com sua avó acometida pelo Alzheimer. Se você tivesse o poder de esquecer algo na vida, o que gostaria? E o que gostaria de eternizar?
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Nascida em Ouro Preto no ano de 1978, Flávia Péret é escritora, pesquisadora e professora de criação literária. Publicou, entre outros, Imprensa Gay no Brasil, 10 Poemas de Amor e de Susto, Outra Noite, Novelinha, Uma Mulher, Os Patos, Mulher-Bomba, além de Instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças. Em 2018, recebeu o prêmio Jean-Jacques Rousseau, da Akademie Schloss Solitude (Alemanha) pelo projeto “Uma Mulher” (livro e site de escrita expandida). Em 2010, venceu o prêmio Memória do Jornalismo Brasileiro, promovido pela Folha de S.Paulo.
Conheça o livro Coisas presentes demais, de Flávia Péret.
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