“LIVRO É INCENTIVO. FOI ASSIM QUE ENTROU NA MINHA VIDA”
Convidada Nanni Rios
Nossa primeira entrevista neste mês de março é com Nanni Rios, catarinense e sócia da Baleia, livraria em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Para Nanni, uma das coisas maravilhosas de ser livreira é receber pedidos do tipo: Ei, procuro “um livro para uma pessoa que tá triste”, ou ainda: Moça, eu queria “um livro para uma pessoa que quer começar sua transição capilar”.
Suave e pilhada na mesma medida, Nanni é formada em jornalismo e trabalha como produtora cultural e DJ. Quando criança, ela foi fisgada pelas revistas de maquiagem e utilidades domésticas de vendedores/as porta a porta, ao descobrir que a cereja do bolo estava no final da revista: sugestões de livros. “Eram adaptações de clássicos, pedi para a minha mãe, que topou comprar”. Daí em diante, todos os meses Nanni aguardava a chegada das revistas para ver os livros estampados e escolher qual seria sua próxima leitura.
Nanni considera que “são demandas literárias (e não literais), que abrem caminho para apresentar os livros por vieses mais interessantes, surpreendentes e entusiasmantes do que a simples sinopse”. Uma livraria pequena e “de calçada”, mas como o próprio nome sugere, gigante em proposições e nas batalhas que abraça. Na Baleia, onde cuida da curadoria do acervo e dos eventos oferecidos pela livraria, ela conta que, certa vez, uma “pessoa que acabou de se descobrir negra comprou A unicórnia preta”, da Audre Lorde, por incentivo seu. “A Baleia tem ‘leia’ no nome. E a escolha só foi ficando mais e mais perfeita”, afirma.
Por Michelle Strzoda
Prazer, Nanni Rios. Nanni é um mar de livros? Que livros e autores(as) te formaram?
Muito prazer! E que grande honra estar aqui no Blog da Relicário, uma editora que eu admiro tanto. <3 Minha formação literária foi em parte nos sebos de rua de Florianópolis, cidade onde morei durante a faculdade, na companhia de uma trupe de amigos boêmios, que gostavam de ler escritores “malditos”, alguns até clássicos como Edgar Allan Poe, Arthur Rimbaud, mas também os mais “sujos”, como Bukowski e os autores da Geração Beat. A gente lia em voz alta na mesa do bar e a emoção tomava conta. Mas, antes disso, eu já tinha experimentado prazer semelhante nas aulas de literatura do colégio: meu professor era um apaixonado por poesia, especialmente Cecília Meireles e os modernos. Ele se emocionava falando de Clarice Lispector. As aulas sempre terminavam em sarau, impossível não se apaixonar. Em casa, quando criança, eu lia a enciclopédia Barsa e fazia os trabalhos de colégio pesquisando naqueles livrões de capa dura que ficavam na prateleira mais alta da estante da sala – mais por reverência do que por distância, porque os livros desciam de lá facilmente, era só pedir.
Nanni é muitas mulheres em uma. Ou uma mulher com várias camadas. Além de livreira, o que faz, do que mais gosta?
Nunca fui do tipo focada, que faz uma coisa só. Entrei para duas faculdades, cursei Jornalismo e Teatro ao mesmo tempo. Hoje sou livreira e produtora cultural – produzo eventos literários e também entretenimento (shows, festas). E também atuo como DJ, um trabalho que acredito ser muito narrativo, afinal a música anda muito junto da poesia, especialmente a música brasileira, que é o tipo de som com o qual eu trabalho. Discotecar é contar uma história, dar um recado, passar uma vibe, é uma espécie de curadoria efêmera ao vivo. Algo parecido com o que eu faço na livraria, quando sugiro livros em torno de um tema ou quando escolho os títulos para o Clube da Baleia, pensando no pulso do mundo. Hoje eu não me vejo sendo só livreira ou só produtora ou só DJ, pelo contrário: ser livreira me faz uma DJ melhor, por exemplo, e vice-versa.
Como foi começar no mercado livreiro? Divide com a gente o momento mais marcante e o pior perrengue pelo qual vc já passou como livreira?
Quando comecei eu não conhecia o mercado livreiro – não fazia ideia de nada, não tinha nem CNPJ. Não foi uma entrada planejada (não aconselho, hehe). Eu tinha um trabalho legal com carteira assinada numa editora maravilhosa – a L&PM –, e trabalhava em contato direto com o público via redes sociais, então não sabia muito das entranhas da coisa. Eu quem ativei toda a presença online da L&PM e tenho muito orgulho disso e do trabalho que foi feito depois que saí de lá. Mas eu tinha o desejo de ampliar isso, queria fazer algo mais, que fosse mais do meu jeito. Então pensei em ter uma livraria, onde eu só venderia livros de que gosto ou que sei da importância, sei falar sobre, que teria uma cara de biblioteca, em que a pessoa dentro dela (eu, a dona da biblioteca) pudesse falar de cada livro com alguma intimidade. Com o tempo, deixei para trás aquelas referências clássicas para mergulhar no maravilhoso mundo da literatura feminista, cujo boom editorial coincide com os primeiros anos da Baleia. A demanda da literartura feminista começou por mim e meu interesse fez a Baleia se tornar uma livraria feminista. E para minha alegria, os leitores e leitoras embarcaram nisso comigo.
Uma das coisas maravilhosas de ser livreira é receber pedidos do tipo: “um livro para uma pessoa que tá triste” ou “um livro para uma pessoa que acabou de se descobrir negra e quer começar sua transição capilar”. E os perrengues têm mais a ver com o fato de ser uma livraria pequena que depende de distribuidores e intermediários sem qualquer proximidade com literatura (por incrível que pareça) e que não conseguem dialogar com nosso conceito. Em suma, não conseguem ver valor numa loja com curadoria que vende relativamente pouco no cotidiano, mas que promove encontros e eventos que potencializam a venda de alguns títulos específicos. Os mesmos fornecedores que não nos mandam alguns títulos porque “a Baleia vende pouco” também não mandam a quantidade solicitada quando a gente faz uma venda grande para um grupo ou clube de leitura, por exemplo, ou quando a gente vai ter um escritor ou escritora famosa dentro da loja, o que aumenta muito a probabilidade de venda. Uma vez, vendi 90 kits de livros para um clube de leitura. Quando mandei o pedido, o retorno foi “achamos o seu pedido estranho…” e demoraram muito mais para me atender, o que me fez atrasar as entregas. Nessa falta de entendimento, todo mundo perde.
Por que Baleia? De onde vem o nome da livraria associado aos livros? Tem a ver com Melville, Moby Dick?
A primeira inspiração para o nome foi a cadela Baleia de Vidas secas, de Graciliano Ramos, um bicho que encarna muitas questões e debates sociais e estéticos, tanto na vida quanto na literatura. Além de ser uma das melhores personagens da literatura canônica nacional, na minha opinião. Depois disso, me abri para as baleias do mar, esses seres imensos e diversos, com características e comportamentos variados, interessantíssimas. E, por fim, a maior de todas: a baleia Moby Dick, uma história de Herman Melville cheia de questões identitárias, nuances homoeróticas. A cereja do bolo é que eu tenho uma cachalote de 25cm de comprimento tatuada na perna (feita depois de abrir a livraria). Outra característica do nome que outras pessoas já me apontaram: Baleia tem “leia” no nome. E a escolha só foi ficando mais e mais perfeita.
O setor do livro sofreu mudanças expressivas provocadas pela digitalização de pequenos e micronegócios, mudança de hábito do consumidor (que migrou para os marketplaces), aumento da taxação de impostos e falta de apoio do governo, acirramento do conservadorismo, entre outros, potencializados pela pandemia de Covid. Como foi (e está sendo) a trajetória da Baleia nessa pandemia?
Antes da pandemia, a Baleia não tinha site nem e-commerce, nunca tínhamos mandado um livro pelos Correios. Nosso trabalho era, basicamente, aglomerar gente em eventos literários, uns 3 ou 4 por semana. A livraria vivia cheia em momentos pontuais. As vendas aconteciam 100% presencialmente, dentro da livraria. Quem comprava eram as pessoas que iam aos eventos, se encantavam com os temas e conversas e queriam seguir rendendo aqueles assuntos em casa. Quando a pandemia impôs as restrições de circulação, tivemos que mudar tudo. Cancelamos os eventos a partir de 14 de março de 2020 e um mês depois estávamos lançando site com e-commerce, clube de assinatura de livros e fazíamos lives diárias no Instagram com escritores, poetas, editores e jornalistas. Com isso, conseguimos reinventar os três pilares da Baleia: a venda de livros cuidadosamente selecionados pelo e-commerce, a curadoria de livros com indicações personalizadas da livreira no clube, e os encontros com debates de ideias por meio das lives. Ainda que a receita tenha caído brutalmente (cerca de 45% menos), mantivemos a marca viva e saudável, ampliamos o alcance dos nossos conteúdos e vendas para todo o país e abrimos novas fontes de receita que podem coexistir com as atividades presenciais, quando for possível voltar a realizá-las.
Você é daquelas que pensa perspectivas para o ano que começa e que arregaça as mangas ou aquela que vai de mansinho, “deixa a vida me levar, vida leva eu”? Qual a sua vibe?
Eu adoro pensar em tudo que pode acontecer num ano que acaba de começar. É como uma vida que acaba de nascer. Não me causa ansiedade listar mil coisas e não conseguir executar todas, pelo contrário: amo sonhar possibilidades, planejar coisas e, sobretudo, ficar atenta a oportunidades que podem aparecer. É bom sentir o mundo pulsar, conversar com pessoas, viajar, acordar o olhar… e quando aparece uma oportunidade, você tira da cartola (ou do seu bloco de notas) uma ideia já meio rascunhada e estruturada que só precisava de uma oportunidade para acontecer. Ao meu ver, isso conta como “arregaçar as mangas” e também como “deixa a vida me levar” ao mesmo tempo, hehe.
Se tivesse o poder de realizar um único desejo com uma varinha de condão nesse momento, qual seria?
Pode ser dois? Porque têm a ver um com o outro: eu quebraria as patentes de todas as vacinas contra a Covid-19 no mundo e anularia todas as privatizações que o Brasil fez ao longo de toda a sua história recente nas áreas de educação, saúde, água/saneamento e energia.
Nanni Rios é fundadora da Livraria Baleia, em Porto Alegre (RS). Nascida em São Pedro de Alcântara (SC), vive em Porto Alegre desde 2009, é formada em Jornalismo pela UFSC e também atua como produtora cultural.
‘NUM PAÍS MACHUCADO, CRIAR É UM ATO DE CURA’ Convidada Claudete Daflon Em entrevista para o Blog da Relicário, a educadora e ensaísta Claudete Daflon disseca as dores de um país inflamado. Ao propor, sob a perspectiva decolonial, tornar a dor matéria-prima e linguagem, Claudete dialoga com um elenco de autoras, poetas, escritores, pensadores …
Roda de conversa virtual Convidada Carola Saavedra Semana de entrevistada e entrevistadores pra lá de especiais. A autora Carola Saavedra é nossa convidada para a abertura da nova seção Roda de Conversa Virtual no Blog da Relicário. Nesta conversa, Carola está rodeada por sete entrevistadores: Berttoni Licarião (@literatoni), doutor em Literatura pela UnB; a …
“A LINHA É PLURAL PORQUE SOMOS SINGULARES” Convidada Edith Derdyk A linha como organismo vivo. A partir de uma arqueologia da linguagem do desenho e da escrita, O corpo da linha: notações sobre desenho, novo livro da autora e artista Edith Derdyk nasce de uma investida crítica contra usos e noções cristalizadas, e desafia a …
Convidada Johanna Stein “SOU UMA LEITORA DE PAPÉIS. EU ADORO O TEXTO DA PIZARNIK. ELA ESTÁ NA MINHA CABECEIRA. FOI NUM DOMINGO SILENCIOSO QUE LI ‘ÁRVORE DE DIANA’ E DESDE ENTÃO TENTO ME RECUPERAR DESSE BAQUE.” Nossa entrevista desta semana especial é com Johanna Stein, proprietária da livraria gato sem rabo, em São Paulo, que muito em breve …
COLUNA LIVRE
“LIVRO É INCENTIVO. FOI ASSIM QUE ENTROU NA MINHA VIDA”
Convidada Nanni Rios
Nossa primeira entrevista neste mês de março é com Nanni Rios, catarinense e sócia da Baleia, livraria em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Para Nanni, uma das coisas maravilhosas de ser livreira é receber pedidos do tipo: Ei, procuro “um livro para uma pessoa que tá triste”, ou ainda: Moça, eu queria “um livro para uma pessoa que quer começar sua transição capilar”.
Suave e pilhada na mesma medida, Nanni é formada em jornalismo e trabalha como produtora cultural e DJ. Quando criança, ela foi fisgada pelas revistas de maquiagem e utilidades domésticas de vendedores/as porta a porta, ao descobrir que a cereja do bolo estava no final da revista: sugestões de livros. “Eram adaptações de clássicos, pedi para a minha mãe, que topou comprar”. Daí em diante, todos os meses Nanni aguardava a chegada das revistas para ver os livros estampados e escolher qual seria sua próxima leitura.
Nanni considera que “são demandas literárias (e não literais), que abrem caminho para apresentar os livros por vieses mais interessantes, surpreendentes e entusiasmantes do que a simples sinopse”. Uma livraria pequena e “de calçada”, mas como o próprio nome sugere, gigante em proposições e nas batalhas que abraça. Na Baleia, onde cuida da curadoria do acervo e dos eventos oferecidos pela livraria, ela conta que, certa vez, uma “pessoa que acabou de se descobrir negra comprou A unicórnia preta”, da Audre Lorde, por incentivo seu. “A Baleia tem ‘leia’ no nome. E a escolha só foi ficando mais e mais perfeita”, afirma.
Por Michelle Strzoda
Prazer, Nanni Rios. Nanni é um mar de livros? Que livros e autores(as) te formaram?
Muito prazer! E que grande honra estar aqui no Blog da Relicário, uma editora que eu admiro tanto. <3
Minha formação literária foi em parte nos sebos de rua de Florianópolis, cidade onde morei durante a faculdade, na companhia de uma trupe de amigos boêmios, que gostavam de ler escritores “malditos”, alguns até clássicos como Edgar Allan Poe, Arthur Rimbaud, mas também os mais “sujos”, como Bukowski e os autores da Geração Beat. A gente lia em voz alta na mesa do bar e a emoção tomava conta. Mas, antes disso, eu já tinha experimentado prazer semelhante nas aulas de literatura do colégio: meu professor era um apaixonado por poesia, especialmente Cecília Meireles e os modernos. Ele se emocionava falando de Clarice Lispector. As aulas sempre terminavam em sarau, impossível não se apaixonar. Em casa, quando criança, eu lia a enciclopédia Barsa e fazia os trabalhos de colégio pesquisando naqueles livrões de capa dura que ficavam na prateleira mais alta da estante da sala – mais por reverência do que por distância, porque os livros desciam de lá facilmente, era só pedir.
Nanni é muitas mulheres em uma. Ou uma mulher com várias camadas. Além de livreira, o que faz, do que mais gosta?
Nunca fui do tipo focada, que faz uma coisa só. Entrei para duas faculdades, cursei Jornalismo e Teatro ao mesmo tempo. Hoje sou livreira e produtora cultural – produzo eventos literários e também entretenimento (shows, festas). E também atuo como DJ, um trabalho que acredito ser muito narrativo, afinal a música anda muito junto da poesia, especialmente a música brasileira, que é o tipo de som com o qual eu trabalho. Discotecar é contar uma história, dar um recado, passar uma vibe, é uma espécie de curadoria efêmera ao vivo. Algo parecido com o que eu faço na livraria, quando sugiro livros em torno de um tema ou quando escolho os títulos para o Clube da Baleia, pensando no pulso do mundo. Hoje eu não me vejo sendo só livreira ou só produtora ou só DJ, pelo contrário: ser livreira me faz uma DJ melhor, por exemplo, e vice-versa.
Como foi começar no mercado livreiro? Divide com a gente o momento mais marcante e o pior perrengue pelo qual vc já passou como livreira?
Quando comecei eu não conhecia o mercado livreiro – não fazia ideia de nada, não tinha nem CNPJ. Não foi uma entrada planejada (não aconselho, hehe). Eu tinha um trabalho legal com carteira assinada numa editora maravilhosa – a L&PM –, e trabalhava em contato direto com o público via redes sociais, então não sabia muito das entranhas da coisa. Eu quem ativei toda a presença online da L&PM e tenho muito orgulho disso e do trabalho que foi feito depois que saí de lá. Mas eu tinha o desejo de ampliar isso, queria fazer algo mais, que fosse mais do meu jeito. Então pensei em ter uma livraria, onde eu só venderia livros de que gosto ou que sei da importância, sei falar sobre, que teria uma cara de biblioteca, em que a pessoa dentro dela (eu, a dona da biblioteca) pudesse falar de cada livro com alguma intimidade. Com o tempo, deixei para trás aquelas referências clássicas para mergulhar no maravilhoso mundo da literatura feminista, cujo boom editorial coincide com os primeiros anos da Baleia. A demanda da literartura feminista começou por mim e meu interesse fez a Baleia se tornar uma livraria feminista. E para minha alegria, os leitores e leitoras embarcaram nisso comigo.
Uma das coisas maravilhosas de ser livreira é receber pedidos do tipo: “um livro para uma pessoa que tá triste” ou “um livro para uma pessoa que acabou de se descobrir negra e quer começar sua transição capilar”. E os perrengues têm mais a ver com o fato de ser uma livraria pequena que depende de distribuidores e intermediários sem qualquer proximidade com literatura (por incrível que pareça) e que não conseguem dialogar com nosso conceito. Em suma, não conseguem ver valor numa loja com curadoria que vende relativamente pouco no cotidiano, mas que promove encontros e eventos que potencializam a venda de alguns títulos específicos. Os mesmos fornecedores que não nos mandam alguns títulos porque “a Baleia vende pouco” também não mandam a quantidade solicitada quando a gente faz uma venda grande para um grupo ou clube de leitura, por exemplo, ou quando a gente vai ter um escritor ou escritora famosa dentro da loja, o que aumenta muito a probabilidade de venda. Uma vez, vendi 90 kits de livros para um clube de leitura. Quando mandei o pedido, o retorno foi “achamos o seu pedido estranho…” e demoraram muito mais para me atender, o que me fez atrasar as entregas. Nessa falta de entendimento, todo mundo perde.
Por que Baleia? De onde vem o nome da livraria associado aos livros? Tem a ver com Melville, Moby Dick?
A primeira inspiração para o nome foi a cadela Baleia de Vidas secas, de Graciliano Ramos, um bicho que encarna muitas questões e debates sociais e estéticos, tanto na vida quanto na literatura. Além de ser uma das melhores personagens da literatura canônica nacional, na minha opinião. Depois disso, me abri para as baleias do mar, esses seres imensos e diversos, com características e comportamentos variados, interessantíssimas. E, por fim, a maior de todas: a baleia Moby Dick, uma história de Herman Melville cheia de questões identitárias, nuances homoeróticas. A cereja do bolo é que eu tenho uma cachalote de 25cm de comprimento tatuada na perna (feita depois de abrir a livraria). Outra característica do nome que outras pessoas já me apontaram: Baleia tem “leia” no nome. E a escolha só foi ficando mais e mais perfeita.
O setor do livro sofreu mudanças expressivas provocadas pela digitalização de pequenos e micronegócios, mudança de hábito do consumidor (que migrou para os marketplaces), aumento da taxação de impostos e falta de apoio do governo, acirramento do conservadorismo, entre outros, potencializados pela pandemia de Covid. Como foi (e está sendo) a trajetória da Baleia nessa pandemia?
Antes da pandemia, a Baleia não tinha site nem e-commerce, nunca tínhamos mandado um livro pelos Correios. Nosso trabalho era, basicamente, aglomerar gente em eventos literários, uns 3 ou 4 por semana. A livraria vivia cheia em momentos pontuais. As vendas aconteciam 100% presencialmente, dentro da livraria. Quem comprava eram as pessoas que iam aos eventos, se encantavam com os temas e conversas e queriam seguir rendendo aqueles assuntos em casa. Quando a pandemia impôs as restrições de circulação, tivemos que mudar tudo. Cancelamos os eventos a partir de 14 de março de 2020 e um mês depois estávamos lançando site com e-commerce, clube de assinatura de livros e fazíamos lives diárias no Instagram com escritores, poetas, editores e jornalistas. Com isso, conseguimos reinventar os três pilares da Baleia: a venda de livros cuidadosamente selecionados pelo e-commerce, a curadoria de livros com indicações personalizadas da livreira no clube, e os encontros com debates de ideias por meio das lives. Ainda que a receita tenha caído brutalmente (cerca de 45% menos), mantivemos a marca viva e saudável, ampliamos o alcance dos nossos conteúdos e vendas para todo o país e abrimos novas fontes de receita que podem coexistir com as atividades presenciais, quando for possível voltar a realizá-las.
Você é daquelas que pensa perspectivas para o ano que começa e que arregaça as mangas ou aquela que vai de mansinho, “deixa a vida me levar, vida leva eu”? Qual a sua vibe?
Eu adoro pensar em tudo que pode acontecer num ano que acaba de começar. É como uma vida que acaba de nascer. Não me causa ansiedade listar mil coisas e não conseguir executar todas, pelo contrário: amo sonhar possibilidades, planejar coisas e, sobretudo, ficar atenta a oportunidades que podem aparecer. É bom sentir o mundo pulsar, conversar com pessoas, viajar, acordar o olhar… e quando aparece uma oportunidade, você tira da cartola (ou do seu bloco de notas) uma ideia já meio rascunhada e estruturada que só precisava de uma oportunidade para acontecer. Ao meu ver, isso conta como “arregaçar as mangas” e também como “deixa a vida me levar” ao mesmo tempo, hehe.
Se tivesse o poder de realizar um único desejo com uma varinha de condão nesse momento, qual seria?
Pode ser dois? Porque têm a ver um com o outro: eu quebraria as patentes de todas as vacinas contra a Covid-19 no mundo e anularia todas as privatizações que o Brasil fez ao longo de toda a sua história recente nas áreas de educação, saúde, água/saneamento e energia.
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