Sejam bem-vindos, bravos leitores. A coluna Pindorama é uma conexão entre a Terra das Palmeiras com o Brasil de hoje. Um lugar onde o pré-colonial pode encontrar a pós-modernidade ou até mesmo a geração Y ou W. Vamos seguir as pegadas dos nossos antepassados em busca de respostas para o hoje. Conhecer a história, principalmente a antiga, é conhecer cada um de nós. É descobrir “ser” Brasil antes que o pau-brasil fosse cortado. Espero que vocês, assim como eu ao mergulhar nas leituras e preciosidades que encontro nas minhas pesquisas, deparem-se com possíveis respostas que procuram onde jamais pensou que encontrariam. Ou, pelo menos, que possamos refletir que somos ainda mais ancestralmente profundos do que os livros oficiais de história.
Mané, manemá
A primeira epidemia no Brasil aconteceu há exatos 465 anos. Ainda é possível ver similaridades com o que vivemos hoje, sem anticorpos para novas doenças virulentas. O desespero, a culpa, os falsos remédios, o medo, o isolamento e a submissão. Os tupis não tinham quem os amparasse e os fizessem entender o que estava ocorrendo. Hoje ao menos conhecemos do que estamos a padecer e minimamente sabemos como nos prevenir, à espera de uma vacina. Não é preciso mais acreditar no truchement francês, no padre, no pajé ou capitão, a menos que você seja um mané – palavra que também é um tupinismo em nossa língua. Quer dizer exatamente o que significa hoje: indivíduo sem capacidade, pouco inteligente; bobo, paspalhão, tolo. Nosso ancestrais sabiam muito bem o que era um mané. No tempo dos tupis era chamado de manemá aquele homem que não havia provado seu valor para a tribo, que era covarde na guerra ou mau caçador/pescador. Não servia de noivo para as moças e era desprezado pelas famílias. Tampouco sua alma seria capaz de juntar-se aos antepassados.
Dos imundos portos da França ao paraíso tupinambá
Tudo começou quando um grande morubixaba tupinambá caiu doente. Os colonos franceses mal tinham chegado à Guanabara e dependiam dos nativos para obter mantimentos e mão de obra para a construção do forte que pretendiam fazer. Eles chegaram em 10 de novembro de 1555, e a praga começou a se espalhar imediatamente. Eram quase seiscentos franceses confinados na pequena ilha de Serigipe em contato direto com os principais líderes tupis. Compartilhando água e comida. Assim que soube que Pindobuçu estava com uma “febre rebelde”, o navegante Nicolas Villegagnon, o franciscano André Thevet e grande comitiva correram para a maloca do chefe tupi para verificar seu estado. Pode-se dizer que ele era o paciente número zero.
Segundo anotações de Jean de Léry, a taba de Pindobuçu era a principal da disputada “Ilha do Mar” da baía, atual Ilha do Governador. Paranãpuã havia sido ocupada pelos tupinambás após a expulsão e exílio dos principais maracajás para o Espírito Santo meses antes da chegada de Villegagnon. A situação não era nada boa para o conhecido maioral tupinambá e seu padecimento seria o prenúncio de uma tragédia de proporções inimagináveis para o povo autóctone “carioca”, até então saudável, longevo e numeroso.
O contato íntimo do chefe tupi na companhia de dezenas, senão centenas, de normandos e bretões, e gentes de quase toda a Europa ao mesmo tempo foi decisivo para a sua contaminação. Apenas aquele curto espaço de tempo, de trinta ou quarentas dias, após a chegada dos franceses já havia provocado os primeiros efeitos do rastro de contágio de uma grave epidemia que iria se espalhar por quase todo o litoral brasileiro na segunda metade do século XVI. E não seria uma simples “gripezinha” para aqueles que não tinham anticorpos contra as doenças exógenas.
Pindobuçu já tinha perdido as esperanças, febril e vendo as forças vitais se exaurirem, perguntou a Thevet para onde iam as almas dos franceses após a morte. Uma demanda que revela a consciência tupinambá, ou pelo menos a desconfiança já naquele tempo, de que a “febre” tinha origem naqueles homens. Os nativos nunca tinham experimentado situação parecida. O contágio zero parece deve ter sido a comemoração ocorrida com a presença de todos os principais chefes tupinambás do Rio de Janeiro pela tão aguardada chegada dos aliados. Essa reunião ocorreu apenas dias após a chegada da comitiva de Villegagnon à Guanabara.
Febre pestilencial
Avisado da presença dos europeus, o mito Cunhambebe – o terror dos lusos – veio com seus guerreiros em numerosas canoas de Angra dos Reis para encontrar os estrangeiros na ilha de Serigipe. Por lá ficou durante quase vinte dias em conversas e reuniões. Houve tempo para contar e saber de quase tudo, com ajuda de intérpretes. Segundo Thevet, quem descreveu a cena, Cunhambebe era alto, forte e musculoso, media mais de 2 metros de altura e era “o mais duro, cruel e temido dentro todos os reis das províncias vizinhas”. Foi pajeado com muitas honras, ganhou presentes e mesuras. Villegagnon o abraçou e prometeu ajuda eterna contra os perós portugueses. Em contrapartida, Cunhambebe pediu para aprender a rezar e passou a imitar os cristãos na missa. Contava vantagens sobre como era cruel com os portugueses. Assim como ele, a maioria dos chefes tupinambás buscou esse contato para melhor extrair as vantagens que buscavam, principalmente aliança e proteção, além dos instrumentos de ferro, como anzóis, facas e armas.
Não deu tempo para Cunhambebe aprender a rezar, ver sua posição reafirmada pelos franceses e ajudá-los em seu projeto colonizador. Alguns dias depois, já de regresso a Angra e mesmo ele tendo um “histórico de guerreiro”, acabou adoecendo dessa “febre rebelde” e veio a óbito de uma hora para outra. Já Pindobuçu prometeu a Thevet deixar a barba crescer, vestir roupas, batizar-se e virar cristão, isso se o franciscano intercedesse junto daquele novo Tupã todo-poderoso. Faria qualquer coisa para que ele o curasse daquele sofrimento. Apelou: “Darei a ti muitos presentes maravilhosos”.
Apocalipse tupi
Nem sempre a vida é tão trágica – Pindobuçu sobreviveu à “febre” e acabou mesmo sendo batizado pelos franceses. A intervenção divina ou a imunidade em dia, ou ainda, quem sabe, uma boa hidratação o salvou de uma passagem de ida à Terra sem Males. A sobrevida o tornou braço direito de Villegagnon e depois um dos personagens mais importantes da Confederação dos Tamoios. No entanto, aquela praga havia sido transmitida para a grande maioria dos chefes tupinambás e estes também voltaram para suas aldeias, assim como Pindobuçu e Cunhambebe. A transmissão local foi gravíssima dentro das malocas – moradias sem janelas onde morava muita gente. A doença passou dos infectados pelos franceses para os pais, filhos, mulheres e demais parentes, atingindo sobretudo idosos e crianças. Uma verdadeira explosão de enfermos e mortes.
Em carta de maio de 1556, o piloto de Villegagnon, Nicolas Barré, revela a proporção da tragédia causada por uma doença que ele descreveu como uma “febre pestilencial”. Segundo os cálculos do navegador, “depois que nós somos em terra, são mortos mais de oitocentos” nativos dessa doença.
Em seis meses, a epidemia foi devastadora. As mortes tupinambás nunca foram numerosas. Em tempos normais, os falecimentos eram cultuados em rituais e celebrações que levavam dias. Existia uma noção de luto muito forte e as despedidas podiam ser excruciantes. Foi o início do apocalipse tupi.
Escrevendo anos mais tarde ao colher relatos daqueles que voltavam da Guanabara, Thevet afirmou que “a mortandade durou muito tempo e fez tanto estrago entre os selvagens/ a grande maioria dos morubixabas morreu desta peste”. O franciscano multiplicou por dez a estimativa de Barré, piloto de Villegagnon, e afirmou com todas as letras que “morreram mais de 8 mil” tupinambás.
Em um primeiro momento houve muita raiva contra os franceses. O ódio que os truchements nutriam pelas ordens morais de Villegagnon fez com que se apressassem a contar aos tupis que a peste tinha vindo justamente naqueles barcos e naquela gente da França Antártica. Houve reunião entre os maiorais para que resolvessem quando e como deviam atacar a ilha dos franceses para se vingar. Os genros normandos foram taxativos de que todos morreriam pela pólvora e demoveram os enlutados tupinambás de um ataque suicida a uma ilha fortificada. Sobrou a indignação pelos xingamentos proferidos das canoas e depois uma última solução, a que se mostrou a mais certa afinal, naquele momento de enorme tristeza, em que a morte não tinha remédio. Os tupinambás buscaram, por medo ou até mesmo consciência, se isolar do contato social dos franceses. Ocorreu um abandono quase total e temporário das aldeias do litoral rumo as do interior.
Thevet relatou o desamparo dos colonos franceses pela grande escassez de alimentos e mão de obra para o corte do pau-brasil. Não se achavam mais “selvagens” para trocar comida ou serviços durante todo o resto de 1556. Ficariam desaparecidos durante meses, buscando curar feridas e lutos, enquanto viam o mesmo processo epidêmico se desenrolar nas aldeias do interior por onde passavam.
Essa primeira tragédia nacional não parou no Rio de Janeiro, mesmo num ritmo lento continuou se disseminando pelos barcos, canoas e caminhos. Cartas jesuítas do ano de 1558 oriundas da capitânia do Espírito Santo falam do terror pela grande mortandade de indígenas. A morte “os levava, a uns com prioris [problemas pulmonares], a outros com câmaras de sangue [problemas intestinais]”.
O desespero era tão grande que os padres resolveram não mais tanger o sino nas procissões de enterro porque isso assustava os nativos, alguns chegavam a desmaiar ao ouvir os badalos da morte. “Finalmente que em breve tempo achamos por conta a seiscentos escravos serem mortos”, escreveu um irmão jesuíta. Escravos são os “índios”. É desse tempo a associação que os tupis faziam entre o batismo com água e a morte, o que fazia, segundo os próprios religiosos, os doentes rapidamente se levantarem de medo. Lá também faltou gente para enterrar os corpos.
A cloroquina da época
No Espírito Santo, a presença constante dos jesuítas confundiu os indígenas, que não sabiam se ficavam por perto ou se deviam se afastar, enquanto que alguns desses homens de Deus afirmavam ver na tragédia um castigo divino contra os descrentes e selecionavam casos de sucesso de cura pela fé – a cloroquina da época. Nos anos seguintes, essa peste iria se espalhar pelo litoral da Bahia, causando mortes e pouca consideração.
Foram muitas epidemias que massacraram os indígenas – essa foi apenas a primeira e mais assustadora. As principais doenças que os acometeram foram as febres (amarela, tifoide, paratifoide e malária), a varíola e a disenteria.
Os métodos usados para a cura naquele tempo causavam ainda mais fraqueza nos pacientes. O tratamento para quase todas as doenças era o sangramento do paciente, que tinha as veias cortadas para “expiar” os males. Ou seja, já fracos, os doentes ainda tinham as veias cortadas para que perdessem sangue. Os médicos ainda se regiam no conceito de que as doenças decorriam das desarmonias e da corrupção dos humores e, por consequência, todo o esforço da medicina curativa visava a refazer esse desequilíbrio e eliminar a corrupção, daí as sangrias e os purgantes serem considerados dois grandes remédios e se utilizarem indistintamente em todas as doenças.
Ainda assim, os tupis haveriam de sobreviver se não viesse junto com a peste, também a guerra e o escravismo. Também iremos passar por isso, se não vierem junto com a peste o ódio e a desunião.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que caminha para a 5ª edição. Seu próximo livro, Arariboia, será publicado em 2021.
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COLUNA PINDORAMA
NOTÍCIAS DA PRIMEIRA EPIDEMIA
por Rafael Freitas da Silva
Sejam bem-vindos, bravos leitores. A coluna Pindorama é uma conexão entre a Terra das Palmeiras com o Brasil de hoje. Um lugar onde o pré-colonial pode encontrar a pós-modernidade ou até mesmo a geração Y ou W. Vamos seguir as pegadas dos nossos antepassados em busca de respostas para o hoje. Conhecer a história, principalmente a antiga, é conhecer cada um de nós. É descobrir “ser” Brasil antes que o pau-brasil fosse cortado. Espero que vocês, assim como eu ao mergulhar nas leituras e preciosidades que encontro nas minhas pesquisas, deparem-se com possíveis respostas que procuram onde jamais pensou que encontrariam. Ou, pelo menos, que possamos refletir que somos ainda mais ancestralmente profundos do que os livros oficiais de história.
Mané, manemá
A primeira epidemia no Brasil aconteceu há exatos 465 anos. Ainda é possível ver similaridades com o que vivemos hoje, sem anticorpos para novas doenças virulentas. O desespero, a culpa, os falsos remédios, o medo, o isolamento e a submissão. Os tupis não tinham quem os amparasse e os fizessem entender o que estava ocorrendo. Hoje ao menos conhecemos do que estamos a padecer e minimamente sabemos como nos prevenir, à espera de uma vacina. Não é preciso mais acreditar no truchement francês, no padre, no pajé ou capitão, a menos que você seja um mané – palavra que também é um tupinismo em nossa língua. Quer dizer exatamente o que significa hoje: indivíduo sem capacidade, pouco inteligente; bobo, paspalhão, tolo. Nosso ancestrais sabiam muito bem o que era um mané. No tempo dos tupis era chamado de manemá aquele homem que não havia provado seu valor para a tribo, que era covarde na guerra ou mau caçador/pescador. Não servia de noivo para as moças e era desprezado pelas famílias. Tampouco sua alma seria capaz de juntar-se aos antepassados.
Dos imundos portos da França ao paraíso tupinambá
Tudo começou quando um grande morubixaba tupinambá caiu doente. Os colonos franceses mal tinham chegado à Guanabara e dependiam dos nativos para obter mantimentos e mão de obra para a construção do forte que pretendiam fazer. Eles chegaram em 10 de novembro de 1555, e a praga começou a se espalhar imediatamente. Eram quase seiscentos franceses confinados na pequena ilha de Serigipe em contato direto com os principais líderes tupis. Compartilhando água e comida. Assim que soube que Pindobuçu estava com uma “febre rebelde”, o navegante Nicolas Villegagnon, o franciscano André Thevet e grande comitiva correram para a maloca do chefe tupi para verificar seu estado. Pode-se dizer que ele era o paciente número zero.
Segundo anotações de Jean de Léry, a taba de Pindobuçu era a principal da disputada “Ilha do Mar” da baía, atual Ilha do Governador. Paranãpuã havia sido ocupada pelos tupinambás após a expulsão e exílio dos principais maracajás para o Espírito Santo meses antes da chegada de Villegagnon. A situação não era nada boa para o conhecido maioral tupinambá e seu padecimento seria o prenúncio de uma tragédia de proporções inimagináveis para o povo autóctone “carioca”, até então saudável, longevo e numeroso.
O contato íntimo do chefe tupi na companhia de dezenas, senão centenas, de normandos e bretões, e gentes de quase toda a Europa ao mesmo tempo foi decisivo para a sua contaminação. Apenas aquele curto espaço de tempo, de trinta ou quarentas dias, após a chegada dos franceses já havia provocado os primeiros efeitos do rastro de contágio de uma grave epidemia que iria se espalhar por quase todo o litoral brasileiro na segunda metade do século XVI. E não seria uma simples “gripezinha” para aqueles que não tinham anticorpos contra as doenças exógenas.
Pindobuçu já tinha perdido as esperanças, febril e vendo as forças vitais se exaurirem, perguntou a Thevet para onde iam as almas dos franceses após a morte. Uma demanda que revela a consciência tupinambá, ou pelo menos a desconfiança já naquele tempo, de que a “febre” tinha origem naqueles homens. Os nativos nunca tinham experimentado situação parecida. O contágio zero parece deve ter sido a comemoração ocorrida com a presença de todos os principais chefes tupinambás do Rio de Janeiro pela tão aguardada chegada dos aliados. Essa reunião ocorreu apenas dias após a chegada da comitiva de Villegagnon à Guanabara.
Febre pestilencial
Avisado da presença dos europeus, o mito Cunhambebe – o terror dos lusos – veio com seus guerreiros em numerosas canoas de Angra dos Reis para encontrar os estrangeiros na ilha de Serigipe. Por lá ficou durante quase vinte dias em conversas e reuniões. Houve tempo para contar e saber de quase tudo, com ajuda de intérpretes. Segundo Thevet, quem descreveu a cena, Cunhambebe era alto, forte e musculoso, media mais de 2 metros de altura e era “o mais duro, cruel e temido dentro todos os reis das províncias vizinhas”. Foi pajeado com muitas honras, ganhou presentes e mesuras. Villegagnon o abraçou e prometeu ajuda eterna contra os perós portugueses. Em contrapartida, Cunhambebe pediu para aprender a rezar e passou a imitar os cristãos na missa. Contava vantagens sobre como era cruel com os portugueses. Assim como ele, a maioria dos chefes tupinambás buscou esse contato para melhor extrair as vantagens que buscavam, principalmente aliança e proteção, além dos instrumentos de ferro, como anzóis, facas e armas.
Não deu tempo para Cunhambebe aprender a rezar, ver sua posição reafirmada pelos franceses e ajudá-los em seu projeto colonizador. Alguns dias depois, já de regresso a Angra e mesmo ele tendo um “histórico de guerreiro”, acabou adoecendo dessa “febre rebelde” e veio a óbito de uma hora para outra. Já Pindobuçu prometeu a Thevet deixar a barba crescer, vestir roupas, batizar-se e virar cristão, isso se o franciscano intercedesse junto daquele novo Tupã todo-poderoso. Faria qualquer coisa para que ele o curasse daquele sofrimento. Apelou: “Darei a ti muitos presentes maravilhosos”.
Apocalipse tupi
Nem sempre a vida é tão trágica – Pindobuçu sobreviveu à “febre” e acabou mesmo sendo batizado pelos franceses. A intervenção divina ou a imunidade em dia, ou ainda, quem sabe, uma boa hidratação o salvou de uma passagem de ida à Terra sem Males. A sobrevida o tornou braço direito de Villegagnon e depois um dos personagens mais importantes da Confederação dos Tamoios. No entanto, aquela praga havia sido transmitida para a grande maioria dos chefes tupinambás e estes também voltaram para suas aldeias, assim como Pindobuçu e Cunhambebe. A transmissão local foi gravíssima dentro das malocas – moradias sem janelas onde morava muita gente. A doença passou dos infectados pelos franceses para os pais, filhos, mulheres e demais parentes, atingindo sobretudo idosos e crianças. Uma verdadeira explosão de enfermos e mortes.
Em carta de maio de 1556, o piloto de Villegagnon, Nicolas Barré, revela a proporção da tragédia causada por uma doença que ele descreveu como uma “febre pestilencial”. Segundo os cálculos do navegador, “depois que nós somos em terra, são mortos mais de oitocentos” nativos dessa doença.
Em seis meses, a epidemia foi devastadora. As mortes tupinambás nunca foram numerosas. Em tempos normais, os falecimentos eram cultuados em rituais e celebrações que levavam dias. Existia uma noção de luto muito forte e as despedidas podiam ser excruciantes. Foi o início do apocalipse tupi.
Escrevendo anos mais tarde ao colher relatos daqueles que voltavam da Guanabara, Thevet afirmou que “a mortandade durou muito tempo e fez tanto estrago entre os selvagens/ a grande maioria dos morubixabas morreu desta peste”. O franciscano multiplicou por dez a estimativa de Barré, piloto de Villegagnon, e afirmou com todas as letras que “morreram mais de 8 mil” tupinambás.
Em um primeiro momento houve muita raiva contra os franceses. O ódio que os truchements nutriam pelas ordens morais de Villegagnon fez com que se apressassem a contar aos tupis que a peste tinha vindo justamente naqueles barcos e naquela gente da França Antártica. Houve reunião entre os maiorais para que resolvessem quando e como deviam atacar a ilha dos franceses para se vingar. Os genros normandos foram taxativos de que todos morreriam pela pólvora e demoveram os enlutados tupinambás de um ataque suicida a uma ilha fortificada. Sobrou a indignação pelos xingamentos proferidos das canoas e depois uma última solução, a que se mostrou a mais certa afinal, naquele momento de enorme tristeza, em que a morte não tinha remédio. Os tupinambás buscaram, por medo ou até mesmo consciência, se isolar do contato social dos franceses. Ocorreu um abandono quase total e temporário das aldeias do litoral rumo as do interior.
Thevet relatou o desamparo dos colonos franceses pela grande escassez de alimentos e mão de obra para o corte do pau-brasil. Não se achavam mais “selvagens” para trocar comida ou serviços durante todo o resto de 1556. Ficariam desaparecidos durante meses, buscando curar feridas e lutos, enquanto viam o mesmo processo epidêmico se desenrolar nas aldeias do interior por onde passavam.
Essa primeira tragédia nacional não parou no Rio de Janeiro, mesmo num ritmo lento continuou se disseminando pelos barcos, canoas e caminhos. Cartas jesuítas do ano de 1558 oriundas da capitânia do Espírito Santo falam do terror pela grande mortandade de indígenas. A morte “os levava, a uns com prioris [problemas pulmonares], a outros com câmaras de sangue [problemas intestinais]”.
O desespero era tão grande que os padres resolveram não mais tanger o sino nas procissões de enterro porque isso assustava os nativos, alguns chegavam a desmaiar ao ouvir os badalos da morte. “Finalmente que em breve tempo achamos por conta a seiscentos escravos serem mortos”, escreveu um irmão jesuíta. Escravos são os “índios”. É desse tempo a associação que os tupis faziam entre o batismo com água e a morte, o que fazia, segundo os próprios religiosos, os doentes rapidamente se levantarem de medo. Lá também faltou gente para enterrar os corpos.
A cloroquina da época
No Espírito Santo, a presença constante dos jesuítas confundiu os indígenas, que não sabiam se ficavam por perto ou se deviam se afastar, enquanto que alguns desses homens de Deus afirmavam ver na tragédia um castigo divino contra os descrentes e selecionavam casos de sucesso de cura pela fé – a cloroquina da época. Nos anos seguintes, essa peste iria se espalhar pelo litoral da Bahia, causando mortes e pouca consideração.
Foram muitas epidemias que massacraram os indígenas – essa foi apenas a primeira e mais assustadora. As principais doenças que os acometeram foram as febres (amarela, tifoide, paratifoide e malária), a varíola e a disenteria.
Os métodos usados para a cura naquele tempo causavam ainda mais fraqueza nos pacientes. O tratamento para quase todas as doenças era o sangramento do paciente, que tinha as veias cortadas para “expiar” os males. Ou seja, já fracos, os doentes ainda tinham as veias cortadas para que perdessem sangue. Os médicos ainda se regiam no conceito de que as doenças decorriam das desarmonias e da corrupção dos humores e, por consequência, todo o esforço da medicina curativa visava a refazer esse desequilíbrio e eliminar a corrupção, daí as sangrias e os purgantes serem considerados dois grandes remédios e se utilizarem indistintamente em todas as doenças.
Ainda assim, os tupis haveriam de sobreviver se não viesse junto com a peste, também a guerra e o escravismo. Também iremos passar por isso, se não vierem junto com a peste o ódio e a desunião.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que caminha para a 5ª edição. Seu próximo livro, Arariboia, será publicado em 2021.
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