Nestes tempos de isolamento social, muitas pessoas respondem, quando indagadas a respeito do que mais sentem falta: do abraço. Claro, negacionistas nunca deixaram de se abraçar a torto e a direito. Para os demais, porém, após mais de um ano de videoconferências, lives, aulas virtuais e reuniões familiares via tela, a falta do abraço é a privação dessa presença tridimensional do Outro, seu cheiro, a temperatura e a textura da sua pele, o volume do seu corpo. Recentemente, contudo, uma amiga me chamou a atenção para o que ela considera o mais dramático da nossa condição virtual: a impossibilidade de nos olharmos nos olhos.
Em Signos, Merleau-Ponty escreveu:
Olho-o. Ele vê que o olho. Vejo que ele vê. Ele vê que estou vendo que ele vê… A análise não tem fim, e se fosse a medida de todas as coisas, os olhares se insinuariam indefinidamente um no outro […]. Ora, ainda que os reflexos dos reflexos vão, em princípio, ao infinito, a visão faz com que as negras aberturas dos dois olhares ajustem-se uma à outra, e que tenhamos não mais duas consciências […], mas dois olhares um dentro do outro, sós nomundo.
Estar com o Outro a bordo da tela significa: eu olho para a câmera, de modo que o Outro me fita nos olhos, mas não eu a ele; se fito o Outro nos olhos, ele não retribui – a menos que fixe o olhar em sua câmera, o que então desfaz o arco do nosso contato. É uma espécie de mergulho impossível, de ajuste impossível da abertura desses dois olhares. É um estar não estando, um olhar não olhando. Que, no entanto, foi o que nos salvou, neste ano – salvou afetos, atividades profissionais, manteve amores e amizades vivos, segurou-nos em muitos casos na beira do buraco da depressão (ou impediu que caíssemos fundo demais).
Fica a curiosidade de saber o que dirão os nossos olhares quando voltarmos a poder nos ver plenamente: a nos olhar nos olhos. Será que vamos nos enxergar de outro jeito? Pela primeira vez, será? E como vai ser fitar nos olhos a criança cujo futuro continuamos comprometendo de modo tão despudorado? Encarar o bicho cujo mundo não toleramos compartilhar e que, em nosso reiterado big bang patriarcal, insistimos em dominar? (“Quando as quatro placas tectônicas da teoria da libertação – as que se ocupam das opressões de gênero, raça, classe e natureza – finalmente se unirem”, escreveu Val Plumwood em Feminism and The Mastery of Nature, “os tremores resultantes podem sacudir as estruturas conceituais da opressão em seus alicerces”).
Chico Buarque cantou, tão lindamente: “Olhos no olhos, quero ver o que você faz/ Ao sentir que sem você eu passo bem demais”. Talvez alguns reencontros de olhares aconteçam por aí. Talvez percebamos que muito do que tínhamos como essencial, inclusive em termos de vínculos, não fosse. Talvez o que importava mesmo se encontrasse em outra parte, em outro tipo de experiência ou relação – com o mundo inclusive, e com o outro Outro, a natureza, o bicho, o mistério de que nos afastamos tanto. O sagrado que jogamos na lata de lixo – tantas vezes, dizem por aí, em nome de Deus.
Nessa clave, quem sabe também seja possível finalmente olhar o Diabo nos olhos e mandá-lo de volta ao quinto dos infernos, onde ele se sente em casa entre torturadores e milicianos, e de onde nunca deveria ter saído. Para tanto, claro, é preciso abrir os olhos. Recriar e sustentar o arco que une o vivo ao vivo. “Olhos nos olhos, quero ver o que você faz” quando a tela se apaga e já não há mais aquela fácil desculpa de que o Wi-Fi hoje está muito ruim em casa.
Partir para o abraço, para o abraço de verdade. Abraçar: cingir com os braços; compreender; estender-se a. Aquele abraço que faz tanta falta, mas que oxalá em breve possa acontecer de novo.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem,Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas) e Deriva (este pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
De vários anos para cá, cursos e obras sobre o que se costumou chamar de “escrita criativa” ganharam espaço não apenas nas universidades, inclusive com a oferta de pós-graduações específicas, mas em espaços livres e independentes de criação literária, na forma de oficinas esporádicas e workshops itinerantes. A “escrita criativa” está relacionada, em especial, com …
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COLUNA ALFAIATARIA
OLHOS NOS OLHOS
por Adriana Lisboa
Nestes tempos de isolamento social, muitas pessoas respondem, quando indagadas a respeito do que mais sentem falta: do abraço. Claro, negacionistas nunca deixaram de se abraçar a torto e a direito. Para os demais, porém, após mais de um ano de videoconferências, lives, aulas virtuais e reuniões familiares via tela, a falta do abraço é a privação dessa presença tridimensional do Outro, seu cheiro, a temperatura e a textura da sua pele, o volume do seu corpo. Recentemente, contudo, uma amiga me chamou a atenção para o que ela considera o mais dramático da nossa condição virtual: a impossibilidade de nos olharmos nos olhos.
Em Signos, Merleau-Ponty escreveu:
Olho-o. Ele vê que o olho. Vejo que ele vê. Ele vê que estou vendo que ele vê… A análise não tem fim, e se fosse a medida de todas as coisas, os olhares se insinuariam indefinidamente um no outro […]. Ora, ainda que os reflexos dos reflexos vão, em princípio, ao infinito, a visão faz com que as negras aberturas dos dois olhares ajustem-se uma à outra, e que tenhamos não mais duas consciências […], mas dois olhares um dentro do outro, sós no mundo.
Estar com o Outro a bordo da tela significa: eu olho para a câmera, de modo que o Outro me fita nos olhos, mas não eu a ele; se fito o Outro nos olhos, ele não retribui – a menos que fixe o olhar em sua câmera, o que então desfaz o arco do nosso contato. É uma espécie de mergulho impossível, de ajuste impossível da abertura desses dois olhares. É um estar não estando, um olhar não olhando. Que, no entanto, foi o que nos salvou, neste ano – salvou afetos, atividades profissionais, manteve amores e amizades vivos, segurou-nos em muitos casos na beira do buraco da depressão (ou impediu que caíssemos fundo demais).
Fica a curiosidade de saber o que dirão os nossos olhares quando voltarmos a poder nos ver plenamente: a nos olhar nos olhos. Será que vamos nos enxergar de outro jeito? Pela primeira vez, será? E como vai ser fitar nos olhos a criança cujo futuro continuamos comprometendo de modo tão despudorado? Encarar o bicho cujo mundo não toleramos compartilhar e que, em nosso reiterado big bang patriarcal, insistimos em dominar? (“Quando as quatro placas tectônicas da teoria da libertação – as que se ocupam das opressões de gênero, raça, classe e natureza – finalmente se unirem”, escreveu Val Plumwood em Feminism and The Mastery of Nature, “os tremores resultantes podem sacudir as estruturas conceituais da opressão em seus alicerces”).
Chico Buarque cantou, tão lindamente: “Olhos no olhos, quero ver o que você faz/ Ao sentir que sem você eu passo bem demais”. Talvez alguns reencontros de olhares aconteçam por aí. Talvez percebamos que muito do que tínhamos como essencial, inclusive em termos de vínculos, não fosse. Talvez o que importava mesmo se encontrasse em outra parte, em outro tipo de experiência ou relação – com o mundo inclusive, e com o outro Outro, a natureza, o bicho, o mistério de que nos afastamos tanto. O sagrado que jogamos na lata de lixo – tantas vezes, dizem por aí, em nome de Deus.
Nessa clave, quem sabe também seja possível finalmente olhar o Diabo nos olhos e mandá-lo de volta ao quinto dos infernos, onde ele se sente em casa entre torturadores e milicianos, e de onde nunca deveria ter saído. Para tanto, claro, é preciso abrir os olhos. Recriar e sustentar o arco que une o vivo ao vivo. “Olhos nos olhos, quero ver o que você faz” quando a tela se apaga e já não há mais aquela fácil desculpa de que o Wi-Fi hoje está muito ruim em casa.
Partir para o abraço, para o abraço de verdade. Abraçar: cingir com os braços; compreender; estender-se a. Aquele abraço que faz tanta falta, mas que oxalá em breve possa acontecer de novo.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem, Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas) e Deriva (este pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
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