Semana de entrevistada e entrevistadores pra lá de especiais. A autora Carola Saavedra é nossa convidada para a abertura da nova seção Roda de Conversa Virtual no Blog da Relicário.
Nesta conversa, Carola está rodeada por sete entrevistadores: Berttoni Licarião (@literatoni), doutor em Literatura pela UnB; a escritora Giovana Madalosso; a escritora e professora Maria Esther Maciel; a curadora e livreira Nélida Capela; a agente literária alemã Nicole Witt; a escritora e crítica literária Noemi Jaffe; e a escritora Socorro Acioli.
Na pauta, maternidade, feminismo(s), ancestralidade, literatura, psicanálise, arte, escrita, América Latina… e mais outros temas, em um diálogo franco e intenso.
Quinta-feira, dia 14 de abril, Carola Saavedra autografa na Janela Livraria, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, o livro O mundo desdobrável, em evento presencial gratuito. Na ocasião, Carola lança também seu novo livro de poesia, Um quarto é muito pouco, pela Quelônio.
Maria Esther Maciel: Carola, você é uma escritora conhecida e reconhecida pelos excelentes romances que escreveu e pela inventividade narrativa que sempre marcou seu trabalho. Recentemente, você publicou um livro de ensaios, O mundo desdobrável, e, agora, tem se dedicado também à poesia. O que a levou a incursionar em outros gêneros literários? Pode falar um pouco sobre essa experiência?
Carola Saavedra: Acho que não tenho uma resposta definitiva. Talvez tenha a ver com a minha própria vida, com o nascimento da minha filha, mas também com uma abertura para o mundo que veio com o “fim” de análise. A análise, o olhar para o inconsciente e certas travessias me permitiram essa coragem apesar do medo. É algo que tem seus reflexos em vários aspectos da minha vida, a compreensão de que é possível sustentar (e suportar) o medo.
Giovana Madalosso: Com armas sonolentas foi um romance escrito em torno do nascimento de sua filha. Ali também parece nascer uma nova escritora, menos realista e mais aberta ao onírico e ao fantástico. Quais aspectos da sua experiência pessoal impactaram a sua produção artística nesse período? De que forma isso se traduziu na sua literatura?
CS: Sabe que eu mesma já me fiz muitas vezes essas perguntas e não tenho ainda respostas satisfatórias? Mas posso fazer algumas aproximações. Acho que a análise (lacaniana) foi importante nesse aspecto. Eu vinha já de muitos anos de análise e estava chegando ao seu “fim”, um longo trabalho com o inconsciente e sua linguagem. A maternidade, claro, significou uma travessia e também uma aproximação a certos aspectos do corpo, gestar outra pessoa sempre me pareceu algo do âmbito do fantástico. E o parto, que experiência mais louca o parto! Até hoje, quando olho para minha filha, que tem sete anos, a sua existência me parece muito incrível. Ela já chegou uma pessoa e eu me pergunto: onde ela estava antes de estar aqui?
Nicole Witt: A partir de sua experiência no ensino brasileiro e alemão, gostaria de pedir que os comparasse e saber como se sente no mundo acadêmico alemão. E qual seria o papel da literatura, da inclusão do panorama contemporâneo nos dois sistemas de ensino?
CS: Hoje em dia não acho os dois sistemas tão diferentes assim, como na época do Magister – o sistema Humboldt, que era menos focado no mercado e mais na experiência do pensamento. Eu me sinto bastante à vontade no sistema alemão. Como estou trabalhando num projeto de pesquisa sobre literatura e arte indígena, tenho muita liberdade. Quanto ao papel da literatura, bom, ela não tem uma função específica, mas serve como ponte, possibilidade de diálogo e também uma forma de nos aproximar da alteridade.
Nélida Capela: Quais suas percepções sobre o mundo do livro no Brasil hoje – mais livrarias independentes, mais editoras e autores?
CS: Tive uma surpresa muito boa nesta viagem de agora ao Rio e a São Paulo – me pareceu que há um aumento das livrarias de rua, também grande interesse na literatura brasileira contemporânea. Algo relativamente novo. Dez anos atrás autores contemporâneos eram quase “literatura de nicho”. Apesar da crise e da pandemia me parece um período muito vivo, com muitos autores novos, sobretudo autoras. Esperemos agora que a literatura se estenda cada vez mais aos grupos “minoritários” da nossa sociedade, porque esse é um longo caminho. Estamos apenas no começo.
Noemi Jaffe: Carola, você se dedica à causa indígena, tanto na forma militante como em sua literatura. Como se sente, sendo branca, morando na Alemanha e estudando essa cultura, mas principalmente escrevendo sobre ela? Sente algum dilema e, caso sim, esse dilema ajuda em seu processo criativo?
CS: Obrigada por abordar o assunto, muito importante para mim, Noemi. Eu não sou branca. Minha origem é espanhola por parte de mãe, e indígena, por parte de pai. Em O mundo desdobrável, falo sobre o apagamento dessa ancestralidade indígena e como meu pai e seus irmãos lidam com essa questão. Ou melhor, como eles não lidam (há um racismo internalizado, o que me parece triste e trágico). Conto que, mesmo quando o meu tio fez o teste de DNA e recebeu uma “prova científica”, ele não quis aceitar o que literalmente “está na cara”. Lembrando que minha família é chilena e me refiro a uma origem mapuche. Assim, meu interesse vem justamente dessa origem e da minha necessidade de resgatar essa ancestralidade. Algo que venho fazendo na ficção, na minha pesquisa e agora também no ensaio.
Socorro Acioli: Carola, como você tem acompanhado a produção literária contemporânea das mulheres da América Latina – Mariana Enriquez, Dolores Reyes, Samanta Schweblin, Pilar Quintana e tantas outras, traduzidas para vários idiomas?
CS: Tenho acompanhado com grande interesse, até por que elas apontam para outras abordagens, outras formas de ver a “realidade”. Caminhos para fora do realismo urbano, que por muito tempo foi a principal tendência da literatura contemporânea no Brasil. Penso muito sobre isso, sobre como narrar a realidade num mundo que nos parece cada vez mais irreal.
Socorro Acioli: O que acha que pode ter fortalecido essa escrita de mulheres de faixa etária aproximada, hispano-hablantes, que tratam de temas reais e históricos com ferramentas sofisticadas de imaginação?
CS: Bom, em primeiro lugar o feminismo e sua influência na sociedade. Devemos muito a esse movimento, que não é homogêneo – devemos falar em feminismos, no plural. Mas, de certa forma, há algo ali que nos une, uma mudança de paradigma, uma mudança real. E isso não tem volta, mesmo que existam forças conservadoras que tentem apagar conquistas. Então, para mim, essa escrita de mulheres é ao mesmo tempo origem e consequência dessas mudanças sociais.
Nicole Witt: Ao escrever, de que depende sua escolha por um ou outro gênero? A recepção – no Brasil e no exterior – tem algum papel nessa escolha?
CS: Nunca penso na recepção. Penso no que quero escrever, no que me interessa. Eu não conseguiria fazer de outra forma. A escrita para mim é muito visceral, tem uma necessidade urgente. Mesmo quando se trata de um gênero mais “racional”, como o ensaio.
Socorro Acioli: Como você definiria, para um leitor estrangeiro, a qualidade e diversidade dos livros escritos por mulheres no Brasil nos últimos 15 anos?
CS: A literatura feita por mulheres e outras “minorias” é a grande revolução da literatura brasileira. Daqui a algumas décadas, quando tivermos uma visão mais abrangente deste período, o início do século XXI será um dos principais temas nos livros de história da literatura no país.
Nélida Capela: Quais artistas inspiram a sua escrita?
CS: Ah, são tantas! Clarice Lispector em primeiro lugar, nunca deixo de me espantar com a existência de uma escritora como ela. Mas também Hilda Hilst, Virginia Woolf, Alejandra Pizarnik, Sor Juana Inés de la Cruz, Elfriede Jelinek… No cinema Agnès Varda, Lucrecia Martel, Chantal Akerman – só para citar alguns nomes. E também Ricardo Piglia, cujos ensaios foram essenciais pra mim.
Nélida Capela: O que diria para as futuras gerações que estão no início do caminho da escrita e da literatura?
CS: Diria algo óbvio e ao mesmo tempo difícil: tenham coragem. Porque sem coragem a gente não vai nem na esquina.
Socorro Acioli: Sobre o feliz crescimento da produção literária contemporânea das escritoras brasileiras, você identifica alguma mudança nos últimos dez anos? Nas temáticas, linguagem ou abordagem?
CS: Sim, nas temáticas com certeza. Acho que fomos perdendo o receio de falar sobre o que nos atinge, fomos compreendendo que os temas relacionados a experiências da mulher não eram temas de nicho e que tinham o mesmo valor “universal” que qualquer outro assunto. Quanto à linguagem, sinto que ainda estamos numa busca, porque começamos a falar de temas que pouco haviam sido abordados na literatura e quando trilhamos novos caminhos a linguagem vai pouco a pouco modificando. O que surgirá nessa literatura escrita por mulheres (especialmente mulheres negras, indígenas, periféricas), em termos de renovação de linguagem, é uma das coisas que mais me interessa.
Berttoni Licarião: Em muitas de suas narrativas, mas também nos ensaios de O mundo desdobrável e sobretudo no romance Com armas sonolentas, outra percepção de tempo parece se fazer presente e contaminar as personagens e até mesmo os desdobramentos do enredo. Sinto uma recusa (com a qual concordo demais e me alegro) em assumir a linearidade imposta por concepções autoritárias de como o tempo deve se comportar e como histórias (e a História) precisam ser contadas. De que maneira esse tempo circular – que emaranha passado, presente e futuro – se manifesta em seu processo criativo? Como você acha que essa noção, aplicada à literatura e à vida, pode nos ajudar a encontrar outros mundos possíveis?
CS: O tempo é uma espécie de Leitmotiv no Armas. Sabemos que o tempo linear é uma invenção da sociedade ocidental, curiosamente tem uma relação com o surgimento da escrita que nos permitiu acumular conhecimento de uma maneira nova e muito efetiva. Porém, nos últimos séculos, o tempo linear ficou muito ligado à ideia de progresso, o que me parece assustador. Como se todos nos movêssemos em direção a um futuro melhor, em que nos tornaríamos melhores, mais evoluídos. Aliás, devemos ser muito cuidadosos com o conceito de evolução, porque ela facilmente nos joga na ideia de que haveria seres mais evoluídos e outros menos evoluídos, povos mais e povos menos evoluídos, uma ideologia que gera consequências nefastas. Nesse sentido, talvez o tempo circular possa servir como uma espécie de “antídoto”, e nos obrigue a pensar o mundo a partir de outros parâmetros, a compreender que o passado nunca passa e que é possível reescrevê-lo.
Noemi Jaffe: Quero repetir uma pergunta que encontro no livro O mundo desdobrável e da qual gostei muito: “Quais são as palavras que você ainda não tem?”.
CS: Tantas! As palavras do inconsciente, aquilo que eu ainda não sei que sei, as palavras dos sonhos e dos livros que ainda posso escrever.
Carola Saavedra, escritora brasileira nascida no Chile, em 1973, é autora dos romances Toda terça, Flores azuis, Paisagem com dromedário, O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas, todos publicados pela Companhia das Letras. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Doutora em Literatura Comparada pela UERJ, professora e pesquisadora de Literatura e Estudos Culturais no Instituto Luso-Brasileiro da Universidade de Colônia, Alemanha, Carola Saavedra está entre as vinte melhores jovens escritoras brasileiras escolhidas pela revista Granta. Sua pesquisa sobre arte e literatura indígena no Brasil integra o projeto “O pensamento das margens: arte e literatura indígena e afro-brasileira”, financiado pela Fundação Thyssen. Pela Relicário publicou O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim (2021).
“A LINHA É PLURAL PORQUE SOMOS SINGULARES” Convidada Edith Derdyk A linha como organismo vivo. A partir de uma arqueologia da linguagem do desenho e da escrita, O corpo da linha: notações sobre desenho, novo livro da autora e artista Edith Derdyk nasce de uma investida crítica contra usos e noções cristalizadas, e desafia a …
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COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
Roda de conversa virtual
Convidada Carola Saavedra
Semana de entrevistada e entrevistadores pra lá de especiais. A autora Carola Saavedra é nossa convidada para a abertura da nova seção Roda de Conversa Virtual no Blog da Relicário.
Nesta conversa, Carola está rodeada por sete entrevistadores: Berttoni Licarião (@literatoni), doutor em Literatura pela UnB; a escritora Giovana Madalosso; a escritora e professora Maria Esther Maciel; a curadora e livreira Nélida Capela; a agente literária alemã Nicole Witt; a escritora e crítica literária Noemi Jaffe; e a escritora Socorro Acioli.
Na pauta, maternidade, feminismo(s), ancestralidade, literatura, psicanálise, arte, escrita, América Latina… e mais outros temas, em um diálogo franco e intenso.
Quinta-feira, dia 14 de abril, Carola Saavedra autografa na Janela Livraria, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, o livro O mundo desdobrável, em evento presencial gratuito. Na ocasião, Carola lança também seu novo livro de poesia, Um quarto é muito pouco, pela Quelônio.
Maria Esther Maciel: Carola, você é uma escritora conhecida e reconhecida pelos excelentes romances que escreveu e pela inventividade narrativa que sempre marcou seu trabalho. Recentemente, você publicou um livro de ensaios, O mundo desdobrável, e, agora, tem se dedicado também à poesia. O que a levou a incursionar em outros gêneros literários? Pode falar um pouco sobre essa experiência?
Carola Saavedra: Acho que não tenho uma resposta definitiva. Talvez tenha a ver com a minha própria vida, com o nascimento da minha filha, mas também com uma abertura para o mundo que veio com o “fim” de análise. A análise, o olhar para o inconsciente e certas travessias me permitiram essa coragem apesar do medo. É algo que tem seus reflexos em vários aspectos da minha vida, a compreensão de que é possível sustentar (e suportar) o medo.
Giovana Madalosso: Com armas sonolentas foi um romance escrito em torno do nascimento de sua filha. Ali também parece nascer uma nova escritora, menos realista e mais aberta ao onírico e ao fantástico. Quais aspectos da sua experiência pessoal impactaram a sua produção artística nesse período? De que forma isso se traduziu na sua literatura?
CS: Sabe que eu mesma já me fiz muitas vezes essas perguntas e não tenho ainda respostas satisfatórias? Mas posso fazer algumas aproximações. Acho que a análise (lacaniana) foi importante nesse aspecto. Eu vinha já de muitos anos de análise e estava chegando ao seu “fim”, um longo trabalho com o inconsciente e sua linguagem. A maternidade, claro, significou uma travessia e também uma aproximação a certos aspectos do corpo, gestar outra pessoa sempre me pareceu algo do âmbito do fantástico. E o parto, que experiência mais louca o parto! Até hoje, quando olho para minha filha, que tem sete anos, a sua existência me parece muito incrível. Ela já chegou uma pessoa e eu me pergunto: onde ela estava antes de estar aqui?
Nicole Witt: A partir de sua experiência no ensino brasileiro e alemão, gostaria de pedir que os comparasse e saber como se sente no mundo acadêmico alemão. E qual seria o papel da literatura, da inclusão do panorama contemporâneo nos dois sistemas de ensino?
CS: Hoje em dia não acho os dois sistemas tão diferentes assim, como na época do Magister – o sistema Humboldt, que era menos focado no mercado e mais na experiência do pensamento. Eu me sinto bastante à vontade no sistema alemão. Como estou trabalhando num projeto de pesquisa sobre literatura e arte indígena, tenho muita liberdade. Quanto ao papel da literatura, bom, ela não tem uma função específica, mas serve como ponte, possibilidade de diálogo e também uma forma de nos aproximar da alteridade.
Nélida Capela: Quais suas percepções sobre o mundo do livro no Brasil hoje – mais livrarias independentes, mais editoras e autores?
CS: Tive uma surpresa muito boa nesta viagem de agora ao Rio e a São Paulo – me pareceu que há um aumento das livrarias de rua, também grande interesse na literatura brasileira contemporânea. Algo relativamente novo. Dez anos atrás autores contemporâneos eram quase “literatura de nicho”. Apesar da crise e da pandemia me parece um período muito vivo, com muitos autores novos, sobretudo autoras. Esperemos agora que a literatura se estenda cada vez mais aos grupos “minoritários” da nossa sociedade, porque esse é um longo caminho. Estamos apenas no começo.
Noemi Jaffe: Carola, você se dedica à causa indígena, tanto na forma militante como em sua literatura. Como se sente, sendo branca, morando na Alemanha e estudando essa cultura, mas principalmente escrevendo sobre ela? Sente algum dilema e, caso sim, esse dilema ajuda em seu processo criativo?
CS: Obrigada por abordar o assunto, muito importante para mim, Noemi. Eu não sou branca. Minha origem é espanhola por parte de mãe, e indígena, por parte de pai. Em O mundo desdobrável, falo sobre o apagamento dessa ancestralidade indígena e como meu pai e seus irmãos lidam com essa questão. Ou melhor, como eles não lidam (há um racismo internalizado, o que me parece triste e trágico). Conto que, mesmo quando o meu tio fez o teste de DNA e recebeu uma “prova científica”, ele não quis aceitar o que literalmente “está na cara”. Lembrando que minha família é chilena e me refiro a uma origem mapuche. Assim, meu interesse vem justamente dessa origem e da minha necessidade de resgatar essa ancestralidade. Algo que venho fazendo na ficção, na minha pesquisa e agora também no ensaio.
Socorro Acioli: Carola, como você tem acompanhado a produção literária contemporânea das mulheres da América Latina – Mariana Enriquez, Dolores Reyes, Samanta Schweblin, Pilar Quintana e tantas outras, traduzidas para vários idiomas?
CS: Tenho acompanhado com grande interesse, até por que elas apontam para outras abordagens, outras formas de ver a “realidade”. Caminhos para fora do realismo urbano, que por muito tempo foi a principal tendência da literatura contemporânea no Brasil. Penso muito sobre isso, sobre como narrar a realidade num mundo que nos parece cada vez mais irreal.
Socorro Acioli: O que acha que pode ter fortalecido essa escrita de mulheres de faixa etária aproximada, hispano-hablantes, que tratam de temas reais e históricos com ferramentas sofisticadas de imaginação?
CS: Bom, em primeiro lugar o feminismo e sua influência na sociedade. Devemos muito a esse movimento, que não é homogêneo – devemos falar em feminismos, no plural. Mas, de certa forma, há algo ali que nos une, uma mudança de paradigma, uma mudança real. E isso não tem volta, mesmo que existam forças conservadoras que tentem apagar conquistas. Então, para mim, essa escrita de mulheres é ao mesmo tempo origem e consequência dessas mudanças sociais.
Nicole Witt: Ao escrever, de que depende sua escolha por um ou outro gênero? A recepção – no Brasil e no exterior – tem algum papel nessa escolha?
CS: Nunca penso na recepção. Penso no que quero escrever, no que me interessa. Eu não conseguiria fazer de outra forma. A escrita para mim é muito visceral, tem uma necessidade urgente. Mesmo quando se trata de um gênero mais “racional”, como o ensaio.
Socorro Acioli: Como você definiria, para um leitor estrangeiro, a qualidade e diversidade dos livros escritos por mulheres no Brasil nos últimos 15 anos?
CS: A literatura feita por mulheres e outras “minorias” é a grande revolução da literatura brasileira. Daqui a algumas décadas, quando tivermos uma visão mais abrangente deste período, o início do século XXI será um dos principais temas nos livros de história da literatura no país.
Nélida Capela: Quais artistas inspiram a sua escrita?
CS: Ah, são tantas! Clarice Lispector em primeiro lugar, nunca deixo de me espantar com a existência de uma escritora como ela. Mas também Hilda Hilst, Virginia Woolf, Alejandra Pizarnik, Sor Juana Inés de la Cruz, Elfriede Jelinek… No cinema Agnès Varda, Lucrecia Martel, Chantal Akerman – só para citar alguns nomes. E também Ricardo Piglia, cujos ensaios foram essenciais pra mim.
Nélida Capela: O que diria para as futuras gerações que estão no início do caminho da escrita e da literatura?
CS: Diria algo óbvio e ao mesmo tempo difícil: tenham coragem. Porque sem coragem a gente não vai nem na esquina.
Socorro Acioli: Sobre o feliz crescimento da produção literária contemporânea das escritoras brasileiras, você identifica alguma mudança nos últimos dez anos? Nas temáticas, linguagem ou abordagem?
CS: Sim, nas temáticas com certeza. Acho que fomos perdendo o receio de falar sobre o que nos atinge, fomos compreendendo que os temas relacionados a experiências da mulher não eram temas de nicho e que tinham o mesmo valor “universal” que qualquer outro assunto. Quanto à linguagem, sinto que ainda estamos numa busca, porque começamos a falar de temas que pouco haviam sido abordados na literatura e quando trilhamos novos caminhos a linguagem vai pouco a pouco modificando. O que surgirá nessa literatura escrita por mulheres (especialmente mulheres negras, indígenas, periféricas), em termos de renovação de linguagem, é uma das coisas que mais me interessa.
Berttoni Licarião: Em muitas de suas narrativas, mas também nos ensaios de O mundo desdobrável e sobretudo no romance Com armas sonolentas, outra percepção de tempo parece se fazer presente e contaminar as personagens e até mesmo os desdobramentos do enredo. Sinto uma recusa (com a qual concordo demais e me alegro) em assumir a linearidade imposta por concepções autoritárias de como o tempo deve se comportar e como histórias (e a História) precisam ser contadas. De que maneira esse tempo circular – que emaranha passado, presente e futuro – se manifesta em seu processo criativo? Como você acha que essa noção, aplicada à literatura e à vida, pode nos ajudar a encontrar outros mundos possíveis?
CS: O tempo é uma espécie de Leitmotiv no Armas. Sabemos que o tempo linear é uma invenção da sociedade ocidental, curiosamente tem uma relação com o surgimento da escrita que nos permitiu acumular conhecimento de uma maneira nova e muito efetiva. Porém, nos últimos séculos, o tempo linear ficou muito ligado à ideia de progresso, o que me parece assustador. Como se todos nos movêssemos em direção a um futuro melhor, em que nos tornaríamos melhores, mais evoluídos. Aliás, devemos ser muito cuidadosos com o conceito de evolução, porque ela facilmente nos joga na ideia de que haveria seres mais evoluídos e outros menos evoluídos, povos mais e povos menos evoluídos, uma ideologia que gera consequências nefastas. Nesse sentido, talvez o tempo circular possa servir como uma espécie de “antídoto”, e nos obrigue a pensar o mundo a partir de outros parâmetros, a compreender que o passado nunca passa e que é possível reescrevê-lo.
Noemi Jaffe: Quero repetir uma pergunta que encontro no livro O mundo desdobrável e da qual gostei muito: “Quais são as palavras que você ainda não tem?”.
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