“COLOCAR-SE NO LUGAR DO OUTRO É EXERCÍCIO DIÁRIO, DESAFIADOR”
convidada Ieda Magri
Em entrevista para o Blog da Relicário, a escritora e professora da UERJ Ieda Magri fala sobre as intenções de Uma exposição, os pontos de contato de alegorias do livro – como o o coração, a casa, a carne, o corpo – com rituais como festas, sacrifício animal, preparação do alimento, a mesa posta. O livro – cujo texto de orelha é assinado pela escritora, tradutora e crítica Paloma Vidal – será lançado nesta semana em dois eventos gratuitos. Dia 14 de dezembro, às 19h, terça-feira, haverá uma conversa da autora com a produtora de conteúdo Bárbara Krauss (@bdebarbarie), a crítica Beatriz Resende e a escritora Giovanna Dealtry, e mediação de Nanni Rios, no canal do YouTube da Livraria Baleia. Para participar, basta acessar este link.
Uma exposiçãotambém terá lançamento presencial – noite de autógrafos com Ieda Magri na Livraria Janela, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, dia 17 de dezembro, às 19h.
Por Michelle Strzoda
Ieda Magri
“Uma maneira de organizar os diversos modos de ver e sentir o mundo e os outros.” Reverberado de intensa sinestesia, o livro de Ieda Magri narra uma fase da vida em que se produz uma quebra com relação ao passado. Ao visitar “lugares” como a infância e explorar a dualidade entre vida e morte, Ieda descortina uma infância desprevenida de futuro em situações protagonizadas por animais, plantas, pedras e gentes.
Ao tocar a carne de outro ser e descobrir-se tão frágil quanto, a autora dialoga com as zonas de sombra que até então habitavam seu caderno-diário-álbum. Uma narrativa particular em dois espaços-tempos distintos, mas complementares. A menina camponesa que vivia longos dias ensolarados e verdes e a mulher que ainda vive dias ensolarados, com menos tons de verde e mais acelerados, em meio a livros, aulas, cadernos. Um livro em que a imagem, o pictórico tem tremenda força, inclusive provocada já pelo próprio título, ao qual se atribuem várias acepções à “exposição”, tema tão atual quanto atemporal.
Como você apresentaria aquela menina diante do boi da infância e essa mulher que, diante do boi a quem dita a morte, escreve?
Ieda Magri: Diria, primeiro, que são duas. Uma totalmente inserida naquele mundo da infância, com animais, plantas, pedras e gentes vivendo longos dias ensolarados e verdes, bastante desprevenida do futuro, reduzida, talvez, àquela vivência própria da infância, que tudo abarca. Outra, que vive dias ainda ensolarados, com bem menos tons de verde, dias que correm, passam muito rápido, em meio a livros, aulas, cadernos…, mas capaz de recuperar a outra toda vez que a volta, na geografia, mais que no tempo, se aproxima.
O coração, a casa, a carne, o corpo. Na narrativa, essas alegorias materiais se conectam a rituais como festas, sacrifício animal, preparação do alimento, a mesa posta e visitam “lugares” como a infância. O que você diria sobre a dualidade entre vida e morte retratada no livro?
IM: No mundo de Uma exposição é uma dualidade bem natural. A morte do animal é vista como morte mesmo, por poucos minutos, talvez menos. Talvez segundos. É uma morte cercada de cuidados, tem a ver com colocar-se, também por pouquíssimo tempo, no lugar do animal que vai morrer. A criança via essa troca de posições que produz empatia no olhar do pai mirando os olhos do boi. Ela imaginava sobre o que via: o pai relutante no seu trabalho de produzir a morte, que era ao mesmo tempo o alimento que garantiria a sobrevivência da família toda e também a festa, a alegria do trabalho coletivo em torno das carnes. Então essa morte se tornava imediatamente um sacrifício justificado e feliz. Há aí uma enorme diferença quando essa forma de produzir alimento é relacionada à forma industrial, a do matadouro, como se pode ver nos livros de Ana Paula Maia: um universo asfixiante e embrutecedor.
Tocar a carne de outro ser e descobrir-se tão frágil quanto. Parafraseando o título do livro, você se expõe, seja na relação com a mãe, seja com o homem que ama, ou ainda com animais e plantas. Propõe uma sensibilidade através das palavras que usa como alimento – cultivo e preparação para a sobrevivência. Qual a sua intenção ao descrever esse simbólico entre as imagens da infância camponesa e do presente, e o colocar-se no lugar do animal sacrificado?
IM: O livro é uma maneira de organizar os diversos modos de ver e sentir o mundo e os outros — não necessariamente humanos — ao redor, numa fase da vida em que se produz uma quebra com relação ao passado. Não tive intenção para fora da própria escrita ou para o meu entendimento sobre a convivência entre os vivos. Levantar bandeiras ou fazer pensar sobre o consumo de carne não estava nos planos. O “colocar-se no lugar do outro” é exercício diário, desafiador, mas extremamente necessário para a convivência seja com quem for. Pode expor falhas, egoísmos. Perturbador, o exercício pode ser uma exposição de si para si, um autoconhecimento mesmo, que a escrita também provoca.
Sobre a “escritade memória”, pode-se falar sobre uma trilha de rastros que aponta para uma ausência. No caso, como descrito no preâmbulo do livro, essa trilha narrativa aponta para uma “viagem ao interior da paisagem e de mim mesma pra reviver o ritual de preparação dessa grande festa familiar”. O que seria ausência em Uma exposição?
IM: A ingenuidade alegre infantil. A foto da família inteira. A casa onde nasci. Meus pais jovens. As colheitas. As brincadeiras de crianças. As tias! Todos os meus amigos antigos e atuais. A dureza absurda de uma vida camponesa que pode ser o contrário da festa. O Brasil de Bolsonaro. A pobreza que envergonha.
“O mundo a que estávamos acostumados era rude.” A partir dessa frase, você descreve uma sucessão de ações sobre o trabalho e a brincadeira das crianças. Seu livro não se furta à abordagem de temas delicados: o trabalho infantil, o sacrifício animal, entre outros. Qual a linha tênue entre descrição das experiências vividas, daquela realidade em relação ao que pensa a mulher que se tornou? Como evitar uma possível naturalização das situações vividas ao mesmo tempo que julgamentos precipitados em relação aos costumes adotados entre os personagens?
IM: Sobre esses temas tão difíceis, não dá pra levar pra uma exposição um modo de vida. Assim, em cenas pinçadas, iluminadas, fora do contexto em que foram geradas, são até mesmo cruéis. Tentei recuperar o entorno das cenas, aquilo que podemos sentir, detectar, no gesto mais breve, no menor titubeio. São cenas de um cotidiano que mudou pouco, que está vivo em cada cidade do interior. A viagem sempre pode ser feita, tudo continua lá e pode ser colhido do modo que quisermos pra montar, cada um, sua exposição. É possível que outra pessoa só veja a morte no animal sacrificado, que só veja a perversidade do trabalho infantil, que para nós era o natural da vida, de todas as famílias que vivem arrancando o próprio sustento da terra: não há idade pra começar a trabalhar. Mas esse trabalho não é visto com o peso que tem para os adultos, se confunde, mesmo em sua dureza, com a brincadeira. Agora, é sem glamour. Tanto que não imaginávamos aquele trabalho como o nosso futuro.
A narrativa de Uma exposição é entremeada de determinadas fotos – sem legenda. Por diversas vezes você cita a palavra “foto” ou “fotografia” no texto. A imagem, o pictórico tem uma força neste livro, inclusive provocada já pelo próprio título, em que podemos atribuir várias acepções à “exposição”, inclusive a fotográfica. Pode descrever como vê essa força e a relação entre a palavra e a imagem no livro?
IM: A princípio as fotos eram apenas uma ajuda para a escrita da narrativa. Fotografei tudo o que pude entre o momento em que saímos em direção ao sítio onde compraríamos o nosso boi, até sua transformação em carne e a festa. Ao voltar ao Rio, imprimi todas as imagens e fui colando num caderno ao qual dei o nome de “Uma exposição”. Pretendia escrever a viagem e depois deixar de lado as fotografias, que, aliás, eram quase todas feias, desfocadas. Escrevi todo o caderno durante os meses que se seguiram e já tinha se passado quase um ano quando decidi levar o caderno pro computador. Eu estava apegada às fotos e à escrita à mão. Era como um álbum antigo, um diário. Foi uma perda, mas era material de arquivo, nada a se mostrar. Então pedi à minha irmã, que é fotógrafa, pra repetir as fotos na próxima vez em que meus tios fossem matar um boi. Ela fez fotos lindíssimas e as mesclei com as minhas, que estavam ligadas a algo daquele momento, “ao isso foi”, como diria Barthes. A imagem que mostra três bois olhando ao fundo a captura do “nosso” boi em seu destino terrível. São olhos acusativos, não teríamos essa “pose”, essa montagem de cena, outra vez. Abro o livro com Sebald porque, quando se pensa em narrativas com fotos, apesar de comum hoje, logo vêm à mente seus livros, os mais inventivos, complexos e revolucionários no uso da fotografia, na desestabilização da fotografia como documento, como o “isso foi” – um uso que trabalha com o engano, com os mal-entendidos. Sebald é incontornável, responde a uma questão muito presente no livro. As fotos mostram coisas que muitos de nós preferiríamos não ver, ainda que se saiba como são produzidas as carnes que compramos no supermercado.
Ieda Magri nasceu em Águas Frias, Santa Catarina, e vive no Rio de Janeiro. Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ e professora na UERJ, publicou os romances Ninguém (7Letras, 2016) e Olhos de bicho (Rocco, 2013) – bolsa Funarte de Criação Literária e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura –, além do livro de contos Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007).
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COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
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Uma exposição também terá lançamento presencial – noite de autógrafos com Ieda Magri na Livraria Janela, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, dia 17 de dezembro, às 19h.
Por Michelle Strzoda
Ieda Magri
“Uma maneira de organizar os diversos modos de ver e sentir o mundo e os outros.” Reverberado de intensa sinestesia, o livro de Ieda Magri narra uma fase da vida em que se produz uma quebra com relação ao passado. Ao visitar “lugares” como a infância e explorar a dualidade entre vida e morte, Ieda descortina uma infância desprevenida de futuro em situações protagonizadas por animais, plantas, pedras e gentes.
Ao tocar a carne de outro ser e descobrir-se tão frágil quanto, a autora dialoga com as zonas de sombra que até então habitavam seu caderno-diário-álbum. Uma narrativa particular em dois espaços-tempos distintos, mas complementares. A menina camponesa que vivia longos dias ensolarados e verdes e a mulher que ainda vive dias ensolarados, com menos tons de verde e mais acelerados, em meio a livros, aulas, cadernos. Um livro em que a imagem, o pictórico tem tremenda força, inclusive provocada já pelo próprio título, ao qual se atribuem várias acepções à “exposição”, tema tão atual quanto atemporal.
Como você apresentaria aquela menina diante do boi da infância e essa mulher que, diante do boi a quem dita a morte, escreve?
Ieda Magri: Diria, primeiro, que são duas. Uma totalmente inserida naquele mundo da infância, com animais, plantas, pedras e gentes vivendo longos dias ensolarados e verdes, bastante desprevenida do futuro, reduzida, talvez, àquela vivência própria da infância, que tudo abarca. Outra, que vive dias ainda ensolarados, com bem menos tons de verde, dias que correm, passam muito rápido, em meio a livros, aulas, cadernos…, mas capaz de recuperar a outra toda vez que a volta, na geografia, mais que no tempo, se aproxima.
O coração, a casa, a carne, o corpo. Na narrativa, essas alegorias materiais se conectam a rituais como festas, sacrifício animal, preparação do alimento, a mesa posta e visitam “lugares” como a infância. O que você diria sobre a dualidade entre vida e morte retratada no livro?
IM: No mundo de Uma exposição é uma dualidade bem natural. A morte do animal é vista como morte mesmo, por poucos minutos, talvez menos. Talvez segundos. É uma morte cercada de cuidados, tem a ver com colocar-se, também por pouquíssimo tempo, no lugar do animal que vai morrer. A criança via essa troca de posições que produz empatia no olhar do pai mirando os olhos do boi. Ela imaginava sobre o que via: o pai relutante no seu trabalho de produzir a morte, que era ao mesmo tempo o alimento que garantiria a sobrevivência da família toda e também a festa, a alegria do trabalho coletivo em torno das carnes. Então essa morte se tornava imediatamente um sacrifício justificado e feliz. Há aí uma enorme diferença quando essa forma de produzir alimento é relacionada à forma industrial, a do matadouro, como se pode ver nos livros de Ana Paula Maia: um universo asfixiante e embrutecedor.
Tocar a carne de outro ser e descobrir-se tão frágil quanto. Parafraseando o título do livro, você se expõe, seja na relação com a mãe, seja com o homem que ama, ou ainda com animais e plantas. Propõe uma sensibilidade através das palavras que usa como alimento – cultivo e preparação para a sobrevivência. Qual a sua intenção ao descrever esse simbólico entre as imagens da infância camponesa e do presente, e o colocar-se no lugar do animal sacrificado?
IM: O livro é uma maneira de organizar os diversos modos de ver e sentir o mundo e os outros — não necessariamente humanos — ao redor, numa fase da vida em que se produz uma quebra com relação ao passado. Não tive intenção para fora da própria escrita ou para o meu entendimento sobre a convivência entre os vivos. Levantar bandeiras ou fazer pensar sobre o consumo de carne não estava nos planos. O “colocar-se no lugar do outro” é exercício diário, desafiador, mas extremamente necessário para a convivência seja com quem for. Pode expor falhas, egoísmos. Perturbador, o exercício pode ser uma exposição de si para si, um autoconhecimento mesmo, que a escrita também provoca.
Sobre a “escrita de memória”, pode-se falar sobre uma trilha de rastros que aponta para uma ausência. No caso, como descrito no preâmbulo do livro, essa trilha narrativa aponta para uma “viagem ao interior da paisagem e de mim mesma pra reviver o ritual de preparação dessa grande festa familiar”. O que seria ausência em Uma exposição?
IM: A ingenuidade alegre infantil. A foto da família inteira. A casa onde nasci. Meus pais jovens. As colheitas. As brincadeiras de crianças. As tias! Todos os meus amigos antigos e atuais. A dureza absurda de uma vida camponesa que pode ser o contrário da festa. O Brasil de Bolsonaro. A pobreza que envergonha.
“O mundo a que estávamos acostumados era rude.” A partir dessa frase, você descreve uma sucessão de ações sobre o trabalho e a brincadeira das crianças. Seu livro não se furta à abordagem de temas delicados: o trabalho infantil, o sacrifício animal, entre outros. Qual a linha tênue entre descrição das experiências vividas, daquela realidade em relação ao que pensa a mulher que se tornou? Como evitar uma possível naturalização das situações vividas ao mesmo tempo que julgamentos precipitados em relação aos costumes adotados entre os personagens?
IM: Sobre esses temas tão difíceis, não dá pra levar pra uma exposição um modo de vida. Assim, em cenas pinçadas, iluminadas, fora do contexto em que foram geradas, são até mesmo cruéis. Tentei recuperar o entorno das cenas, aquilo que podemos sentir, detectar, no gesto mais breve, no menor titubeio. São cenas de um cotidiano que mudou pouco, que está vivo em cada cidade do interior. A viagem sempre pode ser feita, tudo continua lá e pode ser colhido do modo que quisermos pra montar, cada um, sua exposição. É possível que outra pessoa só veja a morte no animal sacrificado, que só veja a perversidade do trabalho infantil, que para nós era o natural da vida, de todas as famílias que vivem arrancando o próprio sustento da terra: não há idade pra começar a trabalhar. Mas esse trabalho não é visto com o peso que tem para os adultos, se confunde, mesmo em sua dureza, com a brincadeira. Agora, é sem glamour. Tanto que não imaginávamos aquele trabalho como o nosso futuro.
A narrativa de Uma exposição é entremeada de determinadas fotos – sem legenda. Por diversas vezes você cita a palavra “foto” ou “fotografia” no texto. A imagem, o pictórico tem uma força neste livro, inclusive provocada já pelo próprio título, em que podemos atribuir várias acepções à “exposição”, inclusive a fotográfica. Pode descrever como vê essa força e a relação entre a palavra e a imagem no livro?
IM: A princípio as fotos eram apenas uma ajuda para a escrita da narrativa. Fotografei tudo o que pude entre o momento em que saímos em direção ao sítio onde compraríamos o nosso boi, até sua transformação em carne e a festa. Ao voltar ao Rio, imprimi todas as imagens e fui colando num caderno ao qual dei o nome de “Uma exposição”. Pretendia escrever a viagem e depois deixar de lado as fotografias, que, aliás, eram quase todas feias, desfocadas. Escrevi todo o caderno durante os meses que se seguiram e já tinha se passado quase um ano quando decidi levar o caderno pro computador. Eu estava apegada às fotos e à escrita à mão. Era como um álbum antigo, um diário. Foi uma perda, mas era material de arquivo, nada a se mostrar. Então pedi à minha irmã, que é fotógrafa, pra repetir as fotos na próxima vez em que meus tios fossem matar um boi. Ela fez fotos lindíssimas e as mesclei com as minhas, que estavam ligadas a algo daquele momento, “ao isso foi”, como diria Barthes. A imagem que mostra três bois olhando ao fundo a captura do “nosso” boi em seu destino terrível. São olhos acusativos, não teríamos essa “pose”, essa montagem de cena, outra vez. Abro o livro com Sebald porque, quando se pensa em narrativas com fotos, apesar de comum hoje, logo vêm à mente seus livros, os mais inventivos, complexos e revolucionários no uso da fotografia, na desestabilização da fotografia como documento, como o “isso foi” – um uso que trabalha com o engano, com os mal-entendidos. Sebald é incontornável, responde a uma questão muito presente no livro. As fotos mostram coisas que muitos de nós preferiríamos não ver, ainda que se saiba como são produzidas as carnes que compramos no supermercado.
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