Por que o Rio de Janeiro não tem um monumento em homenagem e lembrança à contribuição dos tupinambás, tupis e tamoios – gênese dos atuais cariocas?
Desde o lançamento de O Rio antes do Rio tenho sido perguntado quais são os lugares na cidade onde ainda é possível ver e identificar vestígios da civilização tupinambá quinhentista. Se você recebe uma visita de outro local e quer mostrar a ela um pouco o Rio desse período, onde poderia levá-la?
Tem uma coisa que muito me intriga: existe algum monumento dedicado aos povos nativos do rio Carioca? Algum museu que conte a história da cidade além da chegada dos europeus? Algum centro cultural que possa explicar os nomes tupis dos bairros da cidade e as aldeias tupinambás que os originaram?
A resposta é um sonoro NÃO. Nem um turista ou mesmo um carioca ávido por conhecimento sobre sua terra encontrará pistas acerca do tema, sobretudo após o trágico incêndio do Museu Nacional, ocorrido em 2018. A instituição, pertencente à UFRJ, detinha a maior coleção de itens arqueológicos tupinambás e antecipou o débâcle nacional pré-pandemia. Por aqui não há pirâmides de pedra, construções nas montanhas, altares e soluções arquitetônicas mais avançadas que o Império Romano na mesma época. Nossos ancestrais floresceram suas enormes tabas com madeiras, cipós e folhas – e assim pediam fartura aos deuses. Eles já a tinham naturalmente. Nada mais prazeroso do que viver dos mexilhões e ostras da baía como mar.
De época mais remota, os sambaquis eram a lembrança da passagem de um povo ainda mais antigo para os tupis, o que almejamos em relação a eles e não encontramos no barranco de uma praia. Os castelos tupinambás, enormes malocas para dezenas de pessoas, perduravam. Após esse período, tinham suas folhas trocadas ou eram abandonadas. Viravam morada de insetos e apodreciam. Com o tempo, a tapera esquecida rapidamente se desfazia apenas com o vestígio da ocara, a praça central da aldeia. As comunidades tupis também podiam ser deslocadas a depender da qualidade das terras e bosques ao redor, além da proximidade dos rios. Delas, já se encontraram as estacas de defesa, como na Antiga Sé da cidade, ou ainda a extensão de suas malocas, em escavações na Ilha do Governador. A vida se multiplicava porque era transitória e deixava poucos rastros, a mata se refazia. Os mortos terminavam enterrados nas urnas funerárias no espaço da própria aldeia. As igaçabas surgiram em profusão quando tratores começaram a revirar o terreno próximo à margem da baía, na construção da avenida Brasil, nos anos 1940.
Essa presença marcante não foi suficiente para que os tupinambás fossem lembrados como ícones. Por não terem deixado monumentos sólidos na cidade – como fizeram incas, maias e astecas, seus contemporâneos –, é como se sequer tivessem existido.
Territórios em disputa
Estácio de Sá tem um obelisco pirâmide como monumento, próximo ao lugar de sua foz original. O invasor, que nem banho nu tomou no rio Carioca, mereceu tal construção em sua homenagem, erguida para abrigar os restos mortais do português. Mas, foi em vão, uma vez que a Igreja preferiu guardá-los com os Capuchinhos da Tijuca.
Cofundador e protetor da nascente cidade por duas décadas, Arariboia foi jogado ainda em vida para o outro lado da baía. Mesmo sendo um dos principais responsáveis pela existência da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, também ele, um nativo, foi relegado ao esquecimento do lado de cá. A cidade precisaria, portanto, de ícones modernos (monumentos, museus, centros culturais) para reforçar a ideia de memória, a lembrar de onde viemos, quem somos e para onde vamos.
Volta, Karióka!
Interessados em transformar o “cabeção” do Getulio Vargas – quem é do Rio sabe a que me refiro – em um memorial tupinambá e, mais além, converter a praça do Russel em uma nova aldeia Karióca (parte do lugar que teria sido ocupado por ela e onde teria ocorrido parte da batalha de Uruçumirim), com intervenções urbanísticas, artísticas e culturais, moradores do bairro da Glória estão se mobilizando. Nada contra Getulio, talvez a personalidade política mais homenageada do país. Só para ficar em dois exemplos: já tem em sua lembrança o Palácio do Catete e a avenida Presidente Vargas, a mais importante da cidade.
Por razões que ultrapassam aspectos de conexão e valorização da ancestralidade, esse movimento evidencia a urgência, até do ponto de vista do turismo, da necessidade de construção da memória histórica mais completa em representatividade. Não se trata apenas da cultura, da presença de palavras de origem indígena no cotidiano atual, de alimentos como a farofa e a mandioca, de hábitos como tecer e deitar-se na rede, usar pouca roupa, tomar banho todo dia. Essa reconexão com a ancestralidade tupinambá é intrínseca à nossa identidade. E isso é potencial de negócio para a cidade, é geração de oportunidade, renda, empregos.
Tímidas lembranças
Nunca é tarde para se reparar uma injustiça histórica. Tímida lembrança dos tupinambás na cidade fica evidente pelo tamanho da linda estátua do “curumim pescador” na Lagoa Rodrigo de Freitas, ou pelo bruto busto em homenagem ao líder Guaixará, que os moradores de Paquetá instalaram em um dos seus recantos. Também há na Praia do Bananal, na Ilha do Governador, uma corajosa “onça” de pedra que paira sobre uma pedra em alusão ao gato maracajá, ou a uma lenda indígena do amor entre uma índia e um gato do mato, como gostam de contar os locais.
Museu vivo
Os tupinambás merecem mais do que uma lembrança, um punhado de ferro “cotiara”, um monumento estático, que é devido em vergonha há cerca de 450 anos. Para eles, os nossos gregos, eu projetaria um museu do porte do Louvre, ou melhor, um parque tupi onde pudéssemos recriar um Rio antes do Rio no meio da cidade. Com muitas árvores, rios limpos, hortas comunitárias, cachoeiras, animais soltos, aves coloridas, malocas e redes – as para dormir e para conexão com internet. As crianças, certamente, adorariam. Turistas brotariam. E nós, cariocas, bem como pessoas interessadas em ancestralidade e etnias culturais, seríamos mais livres, felizes e informados de nossa história do ponto de vista não eurocêntrico, mais alinhada ao Sul Global e a brasileiros de origem indígena.
Afinal, onde podemos encontrar vestígios e resquícios da civilização tupi “carioca” entre nós? O que deixaram a nós, seus descendentes? Ora, tudo! A majestosa Baía – que nomearam Guanabara –, os rios, as montanhas, as cachoeiras, os animais, sobretudo, a forma como vivemos entre a floresta e o mar.
Quando você ouvir o som de uma maritaca sobrevoando, avistar uma garça pescando seu alimento na lagoa ou observar uma abelha preta inofensiva pousar sobre sua pele, não se engane: são os tupinambás mandando lembranças e confirmando que sua cultura e seus monumentos seguem vivos entre nós.
Rafael Freitas da Silva é carioca, jornalista, repórter e produtor de TV. Publicou pela Relicário O Rio antes do Rio, que caminha para a 5ª edição. Seu próximo livro, Arariboia, será publicado em 2021.
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Para ter acessos às páginas iniciais, ao sumário e às apresentações de Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores para o livro “Batendo pasto”, de Maria Lúcia Alvim, clique aqui. Para comprar o livro, clique aqui.
COLUNA PINDORAMA
DIA DO ÍNDIO E MONUMENTO TUPINAMBÁ
por Rafael Freitas da Silva
Por que o Rio de Janeiro não tem um monumento em homenagem e lembrança à contribuição dos tupinambás, tupis e tamoios – gênese dos atuais cariocas?
Desde o lançamento de O Rio antes do Rio tenho sido perguntado quais são os lugares na cidade onde ainda é possível ver e identificar vestígios da civilização tupinambá quinhentista. Se você recebe uma visita de outro local e quer mostrar a ela um pouco o Rio desse período, onde poderia levá-la?
Tem uma coisa que muito me intriga: existe algum monumento dedicado aos povos nativos do rio Carioca? Algum museu que conte a história da cidade além da chegada dos europeus? Algum centro cultural que possa explicar os nomes tupis dos bairros da cidade e as aldeias tupinambás que os originaram?
A resposta é um sonoro NÃO. Nem um turista ou mesmo um carioca ávido por conhecimento sobre sua terra encontrará pistas acerca do tema, sobretudo após o trágico incêndio do Museu Nacional, ocorrido em 2018. A instituição, pertencente à UFRJ, detinha a maior coleção de itens arqueológicos tupinambás e antecipou o débâcle nacional pré-pandemia. Por aqui não há pirâmides de pedra, construções nas montanhas, altares e soluções arquitetônicas mais avançadas que o Império Romano na mesma época. Nossos ancestrais floresceram suas enormes tabas com madeiras, cipós e folhas – e assim pediam fartura aos deuses. Eles já a tinham naturalmente. Nada mais prazeroso do que viver dos mexilhões e ostras da baía como mar.
De época mais remota, os sambaquis eram a lembrança da passagem de um povo ainda mais antigo para os tupis, o que almejamos em relação a eles e não encontramos no barranco de uma praia. Os castelos tupinambás, enormes malocas para dezenas de pessoas, perduravam. Após esse período, tinham suas folhas trocadas ou eram abandonadas. Viravam morada de insetos e apodreciam. Com o tempo, a tapera esquecida rapidamente se desfazia apenas com o vestígio da ocara, a praça central da aldeia. As comunidades tupis também podiam ser deslocadas a depender da qualidade das terras e bosques ao redor, além da proximidade dos rios. Delas, já se encontraram as estacas de defesa, como na Antiga Sé da cidade, ou ainda a extensão de suas malocas, em escavações na Ilha do Governador. A vida se multiplicava porque era transitória e deixava poucos rastros, a mata se refazia. Os mortos terminavam enterrados nas urnas funerárias no espaço da própria aldeia. As igaçabas surgiram em profusão quando tratores começaram a revirar o terreno próximo à margem da baía, na construção da avenida Brasil, nos anos 1940.
Essa presença marcante não foi suficiente para que os tupinambás fossem lembrados como ícones. Por não terem deixado monumentos sólidos na cidade – como fizeram incas, maias e astecas, seus contemporâneos –, é como se sequer tivessem existido.
Territórios em disputa
Estácio de Sá tem um obelisco pirâmide como monumento, próximo ao lugar de sua foz original. O invasor, que nem banho nu tomou no rio Carioca, mereceu tal construção em sua homenagem, erguida para abrigar os restos mortais do português. Mas, foi em vão, uma vez que a Igreja preferiu guardá-los com os Capuchinhos da Tijuca.
Cofundador e protetor da nascente cidade por duas décadas, Arariboia foi jogado ainda em vida para o outro lado da baía. Mesmo sendo um dos principais responsáveis pela existência da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, também ele, um nativo, foi relegado ao esquecimento do lado de cá. A cidade precisaria, portanto, de ícones modernos (monumentos, museus, centros culturais) para reforçar a ideia de memória, a lembrar de onde viemos, quem somos e para onde vamos.
Volta, Karióka!
Interessados em transformar o “cabeção” do Getulio Vargas – quem é do Rio sabe a que me refiro – em um memorial tupinambá e, mais além, converter a praça do Russel em uma nova aldeia Karióca (parte do lugar que teria sido ocupado por ela e onde teria ocorrido parte da batalha de Uruçumirim), com intervenções urbanísticas, artísticas e culturais, moradores do bairro da Glória estão se mobilizando. Nada contra Getulio, talvez a personalidade política mais homenageada do país. Só para ficar em dois exemplos: já tem em sua lembrança o Palácio do Catete e a avenida Presidente Vargas, a mais importante da cidade.
Por razões que ultrapassam aspectos de conexão e valorização da ancestralidade, esse movimento evidencia a urgência, até do ponto de vista do turismo, da necessidade de construção da memória histórica mais completa em representatividade. Não se trata apenas da cultura, da presença de palavras de origem indígena no cotidiano atual, de alimentos como a farofa e a mandioca, de hábitos como tecer e deitar-se na rede, usar pouca roupa, tomar banho todo dia. Essa reconexão com a ancestralidade tupinambá é intrínseca à nossa identidade. E isso é potencial de negócio para a cidade, é geração de oportunidade, renda, empregos.
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Afinal, onde podemos encontrar vestígios e resquícios da civilização tupi “carioca” entre nós? O que deixaram a nós, seus descendentes? Ora, tudo! A majestosa Baía – que nomearam Guanabara –, os rios, as montanhas, as cachoeiras, os animais, sobretudo, a forma como vivemos entre a floresta e o mar.
Quando você ouvir o som de uma maritaca sobrevoando, avistar uma garça pescando seu alimento na lagoa ou observar uma abelha preta inofensiva pousar sobre sua pele, não se engane: são os tupinambás mandando lembranças e confirmando que sua cultura e seus monumentos seguem vivos entre nós.
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