Há alguns dias, postei no Facebook um parágrafo meio amargurado. Confessei que atravesso uma espécie de desânimo literário, próximo à desistência, mas ainda contaminado por uma paixão que talvez vença a disputa. Uma tristeza criativa, uma espécie de desilusão, que termina por minar um pouco as energias que são a ignição da escrita, poesia ou prosa.
Eu pensava na poesia quando escrevi. Recebi mensagens de estímulo e boas energias. Outras pessoas devem ter passado pelo post com antipatia; outras, ainda, podem ter pensado que o melhor que faço mesmo é parar.
Dias depois, anunciei um novo livro de crônicas. Pareceu ironia. Teve gente que se lembrou do post tristonho de uns dias antes e até brincou: imagina se estivesse desanimada mesmo! E eu ainda estava. O livro surgia como uma espécie de rescaldo, coisa que eu vinha produzindo há anos, sob o manto estranho do silêncio sobre a crônica no Brasil, ou sobre as cronistas.
Ignições
Há poucas palavras mais bonitas do que “ignição” nesta nossa língua sedutora. “Ígneo” e até o nome “Ignácio” me dão os mesmos arrepios. A ignição é fogo, é a faísca que dispara tudo, é o começo, é o start, é o arranque que depende de uma mínima chama, mas forte, forte como precisa ser todo começo de algo que se quer fazer muito e por algum tempo.
A ignição da minha escrita é tudo o que eu sou capaz de ver, ouvir, ler, querendo e sem querer. Mas preciso também de umas horas. Muito mais das horas do que do teto. E de algum silêncio. Não absoluto, porque o mundo é barulhento, ruidoso, mas daquele silêncio cuja cama é um burburinho de vozes longínquas, panela de pressão no fogo, máquina de lavar ligada, TV na sala de trás, os latidos dos cães da vizinhança inteira, o funk discreto da casa ao lado, os carros passando e buzinando na esquina (já morou em esquina?).
Preciso das horas. Quem escreve precisa delas como de ar e água. E sabemos todas e todos que as horas são raras, são escassas. Só pagamos contas e cobranças porque trocamos nossas horas por coisas que sequer queremos direito. As horas se tornam luxo, coisa de quem pode, não de quem quer. E ocupar as horas com escritas, em especial as de ficção, parece um atrevimento muito grande, uma espécie de insolência. Desafiamos a ordem utilitária e financista das coisas quando preferimos ou queremos trocar umas horas pela urdidura concentrada de uns textos, uns textos que sequer serão muito lidos e gastos.
O teto também importa, mas ele sempre pôde ser precário. Num país como o nosso, se fôssemos esperar que as melhores condições acontecessem, até hoje estaríamos à espera de poder escrever. E, se sabemos disso e não estamos à espera, é que tomamos coragem de requerer as horas e os recursos baratos de que a escrita pode se valer.
Das piores condições
Meu desânimo literário tem mais relação com a frustração do que com as condições objetivas em que escrevo. Tem a ver com o clima ruim, com as péssimas notícias que não param de chegar, com as mortes que abrem covas diárias, ao milhar. Também tem a ver com a sensação de esmurrar pontas de faca, ferir-se nisso e jamais cicatrizar a ferida da escrita sem leitores, da escrita sem reconhecimento, da escrita sem visibilidade, de uma escrita que poderia morrer sem ser notada.
De fato, podemos escrever para nós. Escrever como quem fala sozinha durante o banho e se alivia do amargor do dia, da semana, do mês. Escrever como quem lê em silêncio, sem emissão, sem espalhafato. Escrever como cura reflexiva ou autoajuda. Escrever como tratamento para um mal sem diagnóstico preciso. Mas, ao publicarmos, há um elemento a mais em escrever e publicar. Há um desejo – ainda que tímido – de troca, permuta, conversa, até exposição, exibição, um chamado. E é quando tomamos contato com as relações diversas envolvidas nesse universo. Relações que se atravessam à frente mesmo da qualidade ou da quantidade do que se escreve e publica.
Esse surto de frustração e desânimo oscila com o vento, que desce a rua em direção à avenida. Passeia pelas copas das árvores, atrapalha os passarinhos e derruba folhas nesse tráfego discreto. Só eu observava, do portão de casa, as castanhas que caíram no chão quando o desânimo literário de alguém passou por ali, entre um galho e outro, a me sinalizar que somos muitos e muitas. E, nem assim, damos jeito em nada disso.
Ana Elisa Ribeiro é natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
Nossa Ana, você foi direto ao ponto. A escrita que nos alimenta traz também um sentimento de frustração pela falta de interação. Quem escreve, escreve para alguém ler. Vejo nos próprios grupos de escrita que as pessoas não se envolvem, passam, curtem e seguem.
Anima-te!
Abraço
“O que seria da tristeza do marinheiro em alto mar, sem a esperança do que se encontrará no ancoradouro!”.
O desânimo da escritora tem toda razão de ser, mas o apelo para que não pare de escrever surge de nós, admiradores anônimos, ou não, que esperamos pelas palavras: doces, azedas, sentidas e alegres, esperançosas ou desanimadas, mas que vêem nos revelar as angústias e as mazelas da vida!
Parabéns Ana Elisa, sou sua fã e seguidora.
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COLUNA MARCA PÁGINA
O MANTO ESTRANHO DO SILÊNCIO
por Ana Elisa Ribeiro
Há alguns dias, postei no Facebook um parágrafo meio amargurado. Confessei que atravesso uma espécie de desânimo literário, próximo à desistência, mas ainda contaminado por uma paixão que talvez vença a disputa. Uma tristeza criativa, uma espécie de desilusão, que termina por minar um pouco as energias que são a ignição da escrita, poesia ou prosa.
Eu pensava na poesia quando escrevi. Recebi mensagens de estímulo e boas energias. Outras pessoas devem ter passado pelo post com antipatia; outras, ainda, podem ter pensado que o melhor que faço mesmo é parar.
Dias depois, anunciei um novo livro de crônicas. Pareceu ironia. Teve gente que se lembrou do post tristonho de uns dias antes e até brincou: imagina se estivesse desanimada mesmo! E eu ainda estava. O livro surgia como uma espécie de rescaldo, coisa que eu vinha produzindo há anos, sob o manto estranho do silêncio sobre a crônica no Brasil, ou sobre as cronistas.
Ignições
Há poucas palavras mais bonitas do que “ignição” nesta nossa língua sedutora. “Ígneo” e até o nome “Ignácio” me dão os mesmos arrepios. A ignição é fogo, é a faísca que dispara tudo, é o começo, é o start, é o arranque que depende de uma mínima chama, mas forte, forte como precisa ser todo começo de algo que se quer fazer muito e por algum tempo.
A ignição da minha escrita é tudo o que eu sou capaz de ver, ouvir, ler, querendo e sem querer. Mas preciso também de umas horas. Muito mais das horas do que do teto. E de algum silêncio. Não absoluto, porque o mundo é barulhento, ruidoso, mas daquele silêncio cuja cama é um burburinho de vozes longínquas, panela de pressão no fogo, máquina de lavar ligada, TV na sala de trás, os latidos dos cães da vizinhança inteira, o funk discreto da casa ao lado, os carros passando e buzinando na esquina (já morou em esquina?).
Preciso das horas. Quem escreve precisa delas como de ar e água. E sabemos todas e todos que as horas são raras, são escassas. Só pagamos contas e cobranças porque trocamos nossas horas por coisas que sequer queremos direito. As horas se tornam luxo, coisa de quem pode, não de quem quer. E ocupar as horas com escritas, em especial as de ficção, parece um atrevimento muito grande, uma espécie de insolência. Desafiamos a ordem utilitária e financista das coisas quando preferimos ou queremos trocar umas horas pela urdidura concentrada de uns textos, uns textos que sequer serão muito lidos e gastos.
O teto também importa, mas ele sempre pôde ser precário. Num país como o nosso, se fôssemos esperar que as melhores condições acontecessem, até hoje estaríamos à espera de poder escrever. E, se sabemos disso e não estamos à espera, é que tomamos coragem de requerer as horas e os recursos baratos de que a escrita pode se valer.
Das piores condições
Meu desânimo literário tem mais relação com a frustração do que com as condições objetivas em que escrevo. Tem a ver com o clima ruim, com as péssimas notícias que não param de chegar, com as mortes que abrem covas diárias, ao milhar. Também tem a ver com a sensação de esmurrar pontas de faca, ferir-se nisso e jamais cicatrizar a ferida da escrita sem leitores, da escrita sem reconhecimento, da escrita sem visibilidade, de uma escrita que poderia morrer sem ser notada.
De fato, podemos escrever para nós. Escrever como quem fala sozinha durante o banho e se alivia do amargor do dia, da semana, do mês. Escrever como quem lê em silêncio, sem emissão, sem espalhafato. Escrever como cura reflexiva ou autoajuda. Escrever como tratamento para um mal sem diagnóstico preciso. Mas, ao publicarmos, há um elemento a mais em escrever e publicar. Há um desejo – ainda que tímido – de troca, permuta, conversa, até exposição, exibição, um chamado. E é quando tomamos contato com as relações diversas envolvidas nesse universo. Relações que se atravessam à frente mesmo da qualidade ou da quantidade do que se escreve e publica.
Esse surto de frustração e desânimo oscila com o vento, que desce a rua em direção à avenida. Passeia pelas copas das árvores, atrapalha os passarinhos e derruba folhas nesse tráfego discreto. Só eu observava, do portão de casa, as castanhas que caíram no chão quando o desânimo literário de alguém passou por ali, entre um galho e outro, a me sinalizar que somos muitos e muitas. E, nem assim, damos jeito em nada disso.
Ana Elisa Ribeiro é natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
2 respostas para “COLUNA MARCA PÁGINA”
Márcia Regina Falcioni Pinesso
Nossa Ana, você foi direto ao ponto. A escrita que nos alimenta traz também um sentimento de frustração pela falta de interação. Quem escreve, escreve para alguém ler. Vejo nos próprios grupos de escrita que as pessoas não se envolvem, passam, curtem e seguem.
Anima-te!
Abraço
Cláudia Leão De Carvalho Costa
“O que seria da tristeza do marinheiro em alto mar, sem a esperança do que se encontrará no ancoradouro!”.
O desânimo da escritora tem toda razão de ser, mas o apelo para que não pare de escrever surge de nós, admiradores anônimos, ou não, que esperamos pelas palavras: doces, azedas, sentidas e alegres, esperançosas ou desanimadas, mas que vêem nos revelar as angústias e as mazelas da vida!
Parabéns Ana Elisa, sou sua fã e seguidora.
Não pare nunca de escrever e de nos inspirar!
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