Abri o Facebook e aquela enxurrada vertical de postagens e links começou a rolar. Li então um conhecido, poeta, perguntar como lidar com a situação de pessoas queridas que não valorizam em nada o que a gente produz. Ele não era explícito, não dizia qual exatamente era a questão, quem seriam essas pessoas, mas deu para inferir. É razoavelmente comum que a gente escreva, lance livros, dê piruetas e cambalhotas e isso sequer seja notado por pessoas próximas.
Seguiu-se à provocação dele outra enxurrada, a de comentários; a maioria aconselhando e dando toques sobre como agir ou como se acostumar. Eu mesma fui lá rir amarelo um pouquinho e dizer que a gente se habitua a esse desprestígio. Mas que incomoda, ah, incomoda.
Não importa tanto quando um vago conhecido, uma vizinha de janela, um primo bolsominion ou uma ex-amiga de colégio não dão bola para o primeiro, o quinto ou o décimo sexto livro que a gente lança. De fato, pessoas que não curtem literatura ou simplesmente não gostam de ler acham chato ter de ir a um lançamento e gastar com um objeto que não consumirão. Outras pessoas acabam se cansando de nos prestigiar. Torna-se um evento repetitivo, “lá vem ela de novo com um livro”, e se a gente não decola logo e se transforma em celebridade… fica mesmo pouco compensador. Nem tem sentido fazer aquela selfie furta-capital-simbólico.
Talvez seja assim com todo mundo. Meia dúzia de pessoas ausentes podem ter um efeito devastador e constante em nosso espírito. Em especial porque somos humanos e sentimos o ar de desprezo que um ou dois, uma ou duas, que muito nos importam lançam sobre o que escolhemos fazer na vida – mesmo se não foi exatamente uma escolha. Fica mais chato ainda quando o primo é um músico genial, a filha da vizinha é sensacional, o filho do primo de segundo grau virou juiz, oh, que inteligência, promissor desde criancinha, pois é. E a gente lança nosso livrinho de capa mole, sem muito sucesso. Que desprestígio.
Sinfonia de silêncios
Lá pelas tantas, você avisa à família que lançará mais um livro, envia o convite do evento, ou compartilha uma notícia comentando sobre um trabalho seu. Aguarde. Dá para ouvir o cri-cri dos grilos. O silêncio ensurdecedor aumenta se for aquele grupo dos familiares mais distantes, o condomínio, o pessoal do clube, a turma do departamento. Até entre grupos de escritores não rola sequer um burburinho. Às vezes uma chuva rala de desculpas. Direito de cada um, afinal ninguém é obrigado a gostar ou a estar presente.
Mas a discussão do Facebook não era exatamente sobre ler ou gostar de livros. Aquela mensagem era sobre afetos. Sobre as pessoas que torcem pelo que fazemos, não importa o quê. Quando se chega a hora de receber um diploma do curso que a gente ralou para concluir, ganhar uma medalha de segundo lugar na natação, disputar uma vaga naquele curso desprestigiado na universidade, ganhar menção honrosa num concurso de poesia ou tomar posse de um cargo pomposo. Seja o que for, tem aquela meia dúzia de pessoas que a gente quer ver na fila do gargarejo (opa, de máscara), batendo palmas efusivamente, nos enrubescendo com gritos esganiçados de alegria ou simplesmente deixando escorrer uma lagriminha de orgulho. Nas novelas, nas séries, nos filmes – e nos livros – isso é lindo de ver.
Sentidos e percepções
Sou expert em desprestígios. A maioria dos escritores é. Tem uns mais sortudos do que outros, relatos de pais líderes da fan base, irmãos e irmãs atentíssimos, uma tia ou outra que está em todas as fotos dos festejos, a brandir orgulhosamente o livro para a câmera, um marido de peito inflado (isso é bem mais raro do que esposas na mesma posição, pensando aqui de forma heteronormativa). Mas, sei lá. Suspeito de que só depois que se passa desse status a outro um mais visível e institucionalizado, mais comercial ou mais inescapável, é que a tia de segundo grau começa a tecer comentários no grupo de WhatsApp (“te vi no jornal, que chique!”), o primo cosmopolita manda um sticker de “joinha”, a sogra de alguém manda dizer que “parabéns, ainda vai pra Academia Brasileira de Letras” – sim, muita gente acha que esse é o sentido da coisa; o outro sentido inteligível seria o dinheiro.
Mas, alto lá. Para não ser injusta, compartilho algo íntimo. Abraço apertado na prima que não apenas compartilha nas redes tudo o que eu faço, mas também comparece a quase todos os lançamentos, levando consigo amigas e parentes. Também abraço um irmão ou irmã que sempre está lá, mesmo não sendo leitor ou leitora contumaz, mas dando aquela força logística, servindo o amendoim ou registrando os momentos em fotos. Tem uma ex-professora atenta ao que sai na mídia e, orgulhosamente, pede autógrafo, meio a requisitar parte da responsabilidade pela existência de mais uma escritora no planeta. Dois ou três amigos e amigas de colégio que me marcaram para sempre e que trocam comigo as boas energias das pequenas e grandes conquistas. Meia dúzia de colegas de trabalho que dão uma alegria tremenda quando chegam com o melhor abraço e prestigiam o livro com grande curiosidade. Meu filho que, mesmo com aquela cara de desleixo dos adolescentes de modo geral, com fone de ouvido o tempo todo, está sempre ali, ao redor, pondo o braço sobre meu ombro a cada intervalo entre um autógrafo e outro. Feliz quem tem um namorado que, depois de horas de social, traz aquela empadinha esperta com Coca-cola. Sem falar no punhado de amigos e amigas, infalíveis. Tipos de pessoas que consideram que o fato de haver escritoras na Terra seja muito bom.
Meu mais emocionado reconhecimento aos três fãs que tive na vida: minhas avós e meu avô materno. Uma foi a grande responsável pela minha formação de leitora e acompanhou, mais discretamente, a progressão da minha escrita. Outro sempre abria a porta de casa com um sorriso de orelha a orelha, perguntando “e o livro novo???”, a dizer que me vira no jornal e que eu ia muito bem – a risada dele era indescritível. A avó paterna, quando já completamente incapaz de se deslocar e de ter vida social, muito doente, mas extremamente lúcida, fazia absoluta questão de enviar meu tio aos lançamentos para ter o livro autografado. Já sem poder ler, minha avó pedia aos tios e tias que iam diariamente cuidar dela para lerem cada crônica, cada poema; e não apenas tios e tias, mas as cuidadoras também precisavam ler, ao que vovó respondia com comentários, sorrisos e um ar inequívoco de satisfação. Foi assim até morrer. Bom, mãe não vale. Mãe é mãe. Mesmo se não for a todos os lançamentos, guarda aquela pasta grande com todos os recortes de jornais e revistas locais.
É, talvez, não seja meia dúzia, mas uma dúzia. Mas seu reconhecimento e sua companhia dão uma alegria danada, um sentido de amor que talvez faça desconsiderar as outras dezenas ou centenas de desinteressados.
Todo esse afeto é essencial para a vida, só não paga os boletos.
Ana Elisa Ribeiroé natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
Adorei! A um tempo acompanho Ana Elisa ( olha a intimidade!!) e sempre me surpreendo com as suas produções. Quando li este texto, fez sentido e com vc traduz bem em suas palavras ” as pessoas que torcem pelo que fazemos”, sobre o afeto, sobre família e amigos. Continue …
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COLUNA MARCA PÁGINA
QUEM LIGA?
por Ana Elisa Ribeiro
Abri o Facebook e aquela enxurrada vertical de postagens e links começou a rolar. Li então um conhecido, poeta, perguntar como lidar com a situação de pessoas queridas que não valorizam em nada o que a gente produz. Ele não era explícito, não dizia qual exatamente era a questão, quem seriam essas pessoas, mas deu para inferir. É razoavelmente comum que a gente escreva, lance livros, dê piruetas e cambalhotas e isso sequer seja notado por pessoas próximas.
Seguiu-se à provocação dele outra enxurrada, a de comentários; a maioria aconselhando e dando toques sobre como agir ou como se acostumar. Eu mesma fui lá rir amarelo um pouquinho e dizer que a gente se habitua a esse desprestígio. Mas que incomoda, ah, incomoda.
Não importa tanto quando um vago conhecido, uma vizinha de janela, um primo bolsominion ou uma ex-amiga de colégio não dão bola para o primeiro, o quinto ou o décimo sexto livro que a gente lança. De fato, pessoas que não curtem literatura ou simplesmente não gostam de ler acham chato ter de ir a um lançamento e gastar com um objeto que não consumirão. Outras pessoas acabam se cansando de nos prestigiar. Torna-se um evento repetitivo, “lá vem ela de novo com um livro”, e se a gente não decola logo e se transforma em celebridade… fica mesmo pouco compensador. Nem tem sentido fazer aquela selfie furta-capital-simbólico.
Talvez seja assim com todo mundo. Meia dúzia de pessoas ausentes podem ter um efeito devastador e constante em nosso espírito. Em especial porque somos humanos e sentimos o ar de desprezo que um ou dois, uma ou duas, que muito nos importam lançam sobre o que escolhemos fazer na vida – mesmo se não foi exatamente uma escolha. Fica mais chato ainda quando o primo é um músico genial, a filha da vizinha é sensacional, o filho do primo de segundo grau virou juiz, oh, que inteligência, promissor desde criancinha, pois é. E a gente lança nosso livrinho de capa mole, sem muito sucesso. Que desprestígio.
Sinfonia de silêncios
Lá pelas tantas, você avisa à família que lançará mais um livro, envia o convite do evento, ou compartilha uma notícia comentando sobre um trabalho seu. Aguarde. Dá para ouvir o cri-cri dos grilos. O silêncio ensurdecedor aumenta se for aquele grupo dos familiares mais distantes, o condomínio, o pessoal do clube, a turma do departamento. Até entre grupos de escritores não rola sequer um burburinho. Às vezes uma chuva rala de desculpas. Direito de cada um, afinal ninguém é obrigado a gostar ou a estar presente.
Mas a discussão do Facebook não era exatamente sobre ler ou gostar de livros. Aquela mensagem era sobre afetos. Sobre as pessoas que torcem pelo que fazemos, não importa o quê. Quando se chega a hora de receber um diploma do curso que a gente ralou para concluir, ganhar uma medalha de segundo lugar na natação, disputar uma vaga naquele curso desprestigiado na universidade, ganhar menção honrosa num concurso de poesia ou tomar posse de um cargo pomposo. Seja o que for, tem aquela meia dúzia de pessoas que a gente quer ver na fila do gargarejo (opa, de máscara), batendo palmas efusivamente, nos enrubescendo com gritos esganiçados de alegria ou simplesmente deixando escorrer uma lagriminha de orgulho. Nas novelas, nas séries, nos filmes – e nos livros – isso é lindo de ver.
Sentidos e percepções
Sou expert em desprestígios. A maioria dos escritores é. Tem uns mais sortudos do que outros, relatos de pais líderes da fan base, irmãos e irmãs atentíssimos, uma tia ou outra que está em todas as fotos dos festejos, a brandir orgulhosamente o livro para a câmera, um marido de peito inflado (isso é bem mais raro do que esposas na mesma posição, pensando aqui de forma heteronormativa). Mas, sei lá. Suspeito de que só depois que se passa desse status a outro um mais visível e institucionalizado, mais comercial ou mais inescapável, é que a tia de segundo grau começa a tecer comentários no grupo de WhatsApp (“te vi no jornal, que chique!”), o primo cosmopolita manda um sticker de “joinha”, a sogra de alguém manda dizer que “parabéns, ainda vai pra Academia Brasileira de Letras” – sim, muita gente acha que esse é o sentido da coisa; o outro sentido inteligível seria o dinheiro.
Mas, alto lá. Para não ser injusta, compartilho algo íntimo. Abraço apertado na prima que não apenas compartilha nas redes tudo o que eu faço, mas também comparece a quase todos os lançamentos, levando consigo amigas e parentes. Também abraço um irmão ou irmã que sempre está lá, mesmo não sendo leitor ou leitora contumaz, mas dando aquela força logística, servindo o amendoim ou registrando os momentos em fotos. Tem uma ex-professora atenta ao que sai na mídia e, orgulhosamente, pede autógrafo, meio a requisitar parte da responsabilidade pela existência de mais uma escritora no planeta. Dois ou três amigos e amigas de colégio que me marcaram para sempre e que trocam comigo as boas energias das pequenas e grandes conquistas. Meia dúzia de colegas de trabalho que dão uma alegria tremenda quando chegam com o melhor abraço e prestigiam o livro com grande curiosidade. Meu filho que, mesmo com aquela cara de desleixo dos adolescentes de modo geral, com fone de ouvido o tempo todo, está sempre ali, ao redor, pondo o braço sobre meu ombro a cada intervalo entre um autógrafo e outro. Feliz quem tem um namorado que, depois de horas de social, traz aquela empadinha esperta com Coca-cola. Sem falar no punhado de amigos e amigas, infalíveis. Tipos de pessoas que consideram que o fato de haver escritoras na Terra seja muito bom.
Meu mais emocionado reconhecimento aos três fãs que tive na vida: minhas avós e meu avô materno. Uma foi a grande responsável pela minha formação de leitora e acompanhou, mais discretamente, a progressão da minha escrita. Outro sempre abria a porta de casa com um sorriso de orelha a orelha, perguntando “e o livro novo???”, a dizer que me vira no jornal e que eu ia muito bem – a risada dele era indescritível. A avó paterna, quando já completamente incapaz de se deslocar e de ter vida social, muito doente, mas extremamente lúcida, fazia absoluta questão de enviar meu tio aos lançamentos para ter o livro autografado. Já sem poder ler, minha avó pedia aos tios e tias que iam diariamente cuidar dela para lerem cada crônica, cada poema; e não apenas tios e tias, mas as cuidadoras também precisavam ler, ao que vovó respondia com comentários, sorrisos e um ar inequívoco de satisfação. Foi assim até morrer. Bom, mãe não vale. Mãe é mãe. Mesmo se não for a todos os lançamentos, guarda aquela pasta grande com todos os recortes de jornais e revistas locais.
É, talvez, não seja meia dúzia, mas uma dúzia. Mas seu reconhecimento e sua companhia dão uma alegria danada, um sentido de amor que talvez faça desconsiderar as outras dezenas ou centenas de desinteressados.
Todo esse afeto é essencial para a vida, só não paga os boletos.
Ana Elisa Ribeiro é natural de Belo Horizonte, Minas Gerais. Autora de livros de poesia, crônica, conto e infantojuvenis, é professora da rede federal de ensino e pesquisadora do livro e da edição. Pela Relicário, publicou Álbum (2018).
4 respostas para “COLUNA MARCA PÁGINA”
Bel Santos Mayer
Depois desta crônica deliciosa, acho que vou somar à uma dúzia de prestígio.
LUIZ EDMUNDO ALVES DE SOUSA
Maravilha. Conheço bem esses sentimentos. Abraço
Darsoni de Oliveira Caligiorne
Adorei! A um tempo acompanho Ana Elisa ( olha a intimidade!!) e sempre me surpreendo com as suas produções. Quando li este texto, fez sentido e com vc traduz bem em suas palavras ” as pessoas que torcem pelo que fazemos”, sobre o afeto, sobre família e amigos. Continue …
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