Este texto contém spoilers, tanto paro livro Pequena coisas como estas, de Claire Keegan, para o qual escrevi a orelha e fiz a revisão técnica junto à Relicário, quanto para o filme homônimo, ao qual assisti a convite da própria editora e da O2Play Filmes. Parto da minha perspectiva como estudiosa da literatura e cultura irlandesas e suas traduções no Brasil, contextualizando para além das obras e de suas produções, com o intuito de enriquecer a experiência como um todo.
Para uma autora contemporânea com apenas quatro livros publicados (dois volumes de narrativas longas que podem ou não serem categorizadas como romances, duas coletâneas de contos, com alguns desses contos publicados separadamente), é surpreendente que essas duas narrativas longas de Claire Keegan já tenham sido adaptadas para o cinema, em produções de grande impacto no circuito internacional. Foster, de 2010, livro ainda inédito no Brasil, foi primeiro: com direção de Colm Bairéad, An cailín ciúin/The quiet girl foi lançado por aqui como A menina silenciosa e indicado à categoria de Melhor Longa-Metragem Internacional dos Oscars de 2023, além de diversas outras indicações e prêmios irlandeses, britânicos e internacionais. Já Pequenas coisas como estas teve algumas exibições na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e conta com a presença do “oscarizado” Cillian Murphy como o protagonista Bill Furlong. O filme deve estrear nos cinemas no início de 2025.
Finalista do International Booker Prize de 2022 e vencedor do Orwell Prize, o livro foi recém-publicado pela Relicário, com tradução da excelente Adriana Lisboa, e tem sido bem recebido pelo público e pela crítica.
Mas, afinal, o que tanto atrai os cineastas nas narrativas de Claire Keegan?
A concisão e precisão da autora se destacam – inclusive já havia destacado esse aspecto no texto de orelha. Adaptações de romances longos trabalham com cortes, diminuindo o número de enredos paralelos, juntando duas ou mais personagens em uma só, concentrando grandes saltos temporais e geográficos em episódios mais significativos.
Isso não é tão necessário nas narrativas de Keegan: as personagens são poucas, a ambientação é basicamente doméstica e poucos dias se passam na unidade básica de tempo do enredo, ainda que ela seja entrecortada por flashbacks, como no caso de Pequenas coisas.
O roteiro adaptado, assinado pelo dramaturgo, também irlandês, Enda Walsh poderia ser encenado nos palcos de todo o mundo, sem grandes mudanças. No entanto, diferente de uma peça, o filme possibilita close ups extremos na figura de Bill Furlong, já que é no seu corpo que se realiza grande parte do drama, é ali que vemos acontecer a mudança e, para usar um termo caro à narratologia, o dénouement – desatamento de nós – é físico e é possível vê-lo acontecer na constituição física de seu protagonista e foco principal.
***
A Irlanda é uma ilha pequena e pródiga em contadores de histórias, sejam elas escritas ou orais. Foram ganhadores do Nobel de Literatura seus escritores W. B. Yeats, George Bernard Shaw, Samuel Beckett e Seamus Heaney, todos eles figuras de grande importância na literatura mundial, e que contam com diversas traduções no Brasil.
Mais contemporaneamente, vários foram os prêmios literários concedidos a autoras e autores da República da Irlanda, incluindo o Booker Prize de 2023 para Paul Lynch e seu Prophet’s song (Canção do profeta, traduzido por Marta Mendonça em Portugal e inédito no Brasil) e o fenômeno editorial que é Sally Rooney, cujo Intermezzo foi publicado simultaneamente diversas línguas em todo mundo, incluído o português brasileiro, pelas mãos de Débora Landsberg, que vem traduzindo a irlandesa desde seu primeiro romance para a Companhia das Letras. Se dois dos quatro romances de Rooney também foram adaptados para as telas (no caso dela, para séries televisivas de streaming), as semelhanças entre as duas irlandesas não param por aí: ambas estão preocupadas com as sutilezas da comunicação entre as pessoas, especialmente entre homens e mulheres e entre as diferentes gerações. Há, no entanto, uma diferença marcante: embora haja espaço para o amor heterossexual nas narrativas de Keegan, como entre Bill e Eileen Furlong de Pequenas coisas ou entre o tio e a tia da menina em Foster, os laços mais importantes são aqueles construídos, ao longo das narrativas, entre desconhecidos, promovendo arranjos de sociabilidade que escapam a matriz romântica e mesmo da família nuclear e heteronormativa: outras configurações familiares aparecem como possibilidades de amor e cuidado para indivíduos tão destituídos deles.
Mas se muito do livro e do filme se passa na casa dos Furlong, uma casa católica em muitos sentidos típica, com um pai e uma mãe de família dedicados, com um número de filhas chocante para um país europeu em 1985 (cinco!), como é feita a crítica ao padrão de família? Em primeiro lugar, na criação de Bill: de pai desconhecido, criado por uma mãe solo, ao ver-se órfão ele passa a ser criado pela patroa da mãe, uma viúva de guerra de origem protestante e herdeira das terras do marido. Muito mais amorosa no filme que no livro, a Sra. Wilson (Michelle Fairley, mais conhecida por aqui como Catelyn Stark de Game of Thrones) assume, mesmo antes da morte da jovem Sarah, parte dos cuidados de Bill, juntamente com o caseiro Ned.
Criado por duas mulheres de gerações, religiões e classes bem distintas, Bill acaba tendo muito mais oportunidades do que se esperaria de alguém nascido fora do casamento, uma instituição tão importante para a ultraconservadora República da Irlanda, onde o divórcio tornou-se legal apenas em 1996, por meio de emenda à constituição que, muito influenciada pelo catolicismo dominante, até então vedava essa possibilidade, assim como a homossexualidade, que permaneceu ilegal até 1993, mesmo ano da liberalização da venda do uso de contraceptivos sem necessidade de receita médica.
Em segundo lugar, temos a outra “casa” onde se passa a trama: uma casa de Deus, o convento de freiras onde estão alojadas dezenas de mulheres, num tipo de instituição conhecida como Casas de Penitência e Remissão, por vezes Casas de Mãe e Bebê ou, ainda, Lavanderias de Madalena, em referência à mais conhecida penitente e discípula de Jesus. Essas instituições são pouco conhecidas no Brasil, o caso mais famoso sendo o do Lar de Mães e Bebês do Bom Socorro na cidade de Tuam, cujas escavações em 2014 revelaram “quantidades significativas de restos humanos” em pelo menos 17 das 20 câmaras subterrâneas examinadas, segundo reportagem do El País.
A existência dessas instituições e a forma como lidavam com as mulheres revelam a falência do ideal da família católica, pautado na repressão e abstinência sexual antes do casamento, assim como a proibição do uso de anticoncepcionais e questões legais do direito sucessório que dificultavam o casamento entre homens e mulheres jovens, sem falar na impossibilidade do aborto seguro e legal, que até 2018 era banido em todos os casos, com leis ainda mais restritivas do que a já draconiana lei brasileira.
O resultado foram as milhares de mulheres que passaram pelas diferentes formas desse tipo de instituição de aprisionamento de irlandesas que, por diferentes razões, incluindo-se estupros, tinham sua sexualidade e seus corpos controlados pela colusão de Estado e Igreja. E não se tratava apenas de controle, mas também de lucro, uma vez que tanto os frutos de seu trabalho, no caso das lavanderias, quanto os próprios bebês eram comercializados, por meio de adoções internacionais, especialmente para os Estados Unidos, onde a compra de bebês não era (e ainda não é) ilegal, devido à existência de instituições privadas de adoção.
Bill Furlong entende que, não fosse a Sra. Wilson, muito provavelmente sua mãe também teria sido levada ao convento como “Madalena”, e ele mesmo talvez fosse para um orfanato, locais onde outro tipo de abuso eclesiástico ocorreu a tantos meninos e meninas não só na Irlanda, mas em todo o mundo. O ostracismo a que ele é exposto por ser um filho “bastardo” (o xingamento que ele se recusa a repetir quando inquirido pela Sra. Wilson após voltar pra casa com o casaco coberto por cusparadas) nem se compara ao que poderia ter ocorrido não fosse o acolhimento da Sra. Wilson.
Se, por um lado, é complicado, sob o ponto de vista político, ver uma mulher rica protestante como salvadora de uma família católica pobre (Eileen Furlong diz ao marido que, afinal de contas, a Sra. Wilson, do alto de sua casa, era a única mulher da cidade que podia fazer o que queria), ou um homem como o herói que quebra o pacto de silêncio de toda uma cidade, é interessante ver como se dá a quebra dos papéis de gênero nas narrativas de Keegan, tanto aqui quanto em Foster. Quem tem “o coração mole” é Bill, não a pragmática Eileen Furlong (Eileen Walsh). Se, por um lado, Eileen por horas parece excessivamente materialista e individualista, seu carinho pelas filhas, visível no filme na forma como ela orquestra a feitura coletiva do bolo de Natal, lhe dá uma motivação compreensível.
A escolha de Eileen Walsh, assim como a de Michelle Fairley, não se deve apenas ao fato de a Irlanda ser uma ilha pequena. Ambas as atrizes participaram de outros filmes de temática parecida, no caso de Fairley, uma ponta em Philomena (2013, dir. Stephen Frears), estrelado por Judi Dench como uma mãe irlandesa cujo filho foi tomado por freiras. Já a escalação de Walsh me interessa por diversos motivos. Em primeiro lugar, algo que também acontece em filmes de países outros que os EUA, temos uma mulher que é apenas um ano mais nova do que seu par romântico (Murphy tem 48 anos, e Walsh, 47) e que foge dos padrões de beleza: dentuça e com olhos esbugalhados, ela não tem a beleza de Emily Blunt, nem mesmo de Florence Pugh, vértices do triângulo romântico com quem Murphy contracenou em Oppenheimer. No entanto, Walsh e Murphy trabalharam juntos na peça Disco pigs (1996), escrita por Enda e interpretada por Eileen e Cillian, sendo que este último reprisou o papel na adaptação da peça para o cinema, em filme de 2001. Murphy também aparece como produtor do filme e a escalação de Enda Walsh para o roteiro dá continuidade a uma parceria de anos: eu mesma tive o prazer de ver Murphy ao vivo na peça Ballyturk em 2014.
Para além desse histórico de colaborações, o casting de Eileen Walsh como a relutante esposa de Furlong revela uma importante relação intertextual: Walsh foi uma das protagonistas do filme The Magdalene sisters (2002, dir. Peter Mullan), lançado no Brasil dois anos depois como Em nome de deus. No longa, Walsh é uma das quatro “pecadoras” encarceradas em um Asilo de Madalenas, mais especificamente uma jovem mãe solo cuja deficiência intelectual a torna alvo preferencial para abuso sexual nas mãos de um dos padres do convento e aquela cujo fim é o mais trágico das quatro, já que ela morre jovem e encarcerada em outra instituição de controle de dissidências, um manicômio.
Ver Eileen Walsh como a atriz num filme que, como o documentário em que foi baseado (Sex in a cold climate, 1998, dir. Steve Humphries) e a peça Eclipsed (1992), escrita por Patricia Burke Brogan, ajudou a chamar atenção da sociedade irlandesa e do resto do mundo para os crimes cometidos contra as mulheres pela Igreja com a anuência (e financiamento) do estado irlandês, ocupando, neste novo filme, a posição não mais de uma “penitente”, mas sim de quem acha que nada daquilo tem a ver com ela, é um choque para quem a reconhece.
Diferentemente de Pequenas coisas, tanto os filmes (os dois ficcionais e o documentário) quanto a peça são muito mais explícitos na exposição da chaga irlandesa que foram essas instituições de controle e contenção. Acontece que nem o livro de Keegan nem o filme adaptado dele querem ter essa função didática. Eles partem do pressuposto de que, assim como o resto da cidade de New Ross, o público também não precisa (e talvez nem queira) saber exatamente o que acontece ali.
Na narrativa escrita, lemos sobre boatos e testemunhamos, junto com Bill Furlong, apenas pedaços da experiência; já o filme, que faz bom uso da faixa de áudio da mídia audiovisual, traz o choro insistente de bebês que jamais são de fato vistos, apenas ouvidos ao longe. O olho de Bill e o olho da câmera, posicionada logo acima de seu ombro e com visão de sua nuca, oferece uma visão fragmentada, assim como a reação de Bill no lugar do que ele realmente vê. Ele é o foco da narrativa e sua experiência é nosso centro moral. A repetição de ações cotidianas como o lavar das mãos ao chegar em casa, o dirigir do caminhão (nós somos levadas ao convento na caçamba, a câmera como um ponto de vista dentre os sacos de carvão) traduzem para o cinema o ritmo narrativo que replica características do próprio Bill: meticuloso, considerado, mas ainda assim decidido.
Nesse sentido, o filme faz uma adaptação coerente da narrativa de Keegan, oferecendo vislumbres de uma história muito maior, que cabe a quem assiste, como a quem lê, explorar mais, fazendo para si uma jornada de descoberta como a de seu protagonista.
Maria Rita Drummond Viana é leitora, pesquisadora, professora e tradutora. Especialista em estudos irlandeses, é vice-presidente da International Yeats Society. Seu trabalho com as escritas de vida (autobiografias, diários, cartas, memórias e outros gêneros não ficcionais e híbridos) reacendeu seu interesse em Virginia Woolf e levou à criação, com colegas de todo Brasil, do KEW, o primeiro grupo de pesquisa dedicado aos estudos woolfianos no Brasil. Pela Relicário, traduziu Constelações, de Sinéad Gleeson, convidada da Flip 2023.
NABOS, COMPUTADORES E MARACÁS por Adriana Lisboa O apanhador de nabos Mostra o caminho Com um nabo – Kobayashi Issa (1763-1826) O que poderão a literatura e a arte no nosso mundo, hoje? Como é que elas podem ser “por nós”? Cortázar dizia ser a literatura uma das formas da felicidade humana. Para …
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COLUNA LIVRE
PESSOAS CONTIDAS COMO ESTAS
Por Maria Rita Drummond Viana
Nota prévia:
Este texto contém spoilers, tanto paro livro Pequena coisas como estas, de Claire Keegan, para o qual escrevi a orelha e fiz a revisão técnica junto à Relicário, quanto para o filme homônimo, ao qual assisti a convite da própria editora e da O2Play Filmes. Parto da minha perspectiva como estudiosa da literatura e cultura irlandesas e suas traduções no Brasil, contextualizando para além das obras e de suas produções, com o intuito de enriquecer a experiência como um todo.
Para uma autora contemporânea com apenas quatro livros publicados (dois volumes de narrativas longas que podem ou não serem categorizadas como romances, duas coletâneas de contos, com alguns desses contos publicados separadamente), é surpreendente que essas duas narrativas longas de Claire Keegan já tenham sido adaptadas para o cinema, em produções de grande impacto no circuito internacional. Foster, de 2010, livro ainda inédito no Brasil, foi primeiro: com direção de Colm Bairéad, An cailín ciúin/The quiet girl foi lançado por aqui como A menina silenciosa e indicado à categoria de Melhor Longa-Metragem Internacional dos Oscars de 2023, além de diversas outras indicações e prêmios irlandeses, britânicos e internacionais. Já Pequenas coisas como estas teve algumas exibições na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e conta com a presença do “oscarizado” Cillian Murphy como o protagonista Bill Furlong. O filme deve estrear nos cinemas no início de 2025.
Finalista do International Booker Prize de 2022 e vencedor do Orwell Prize, o livro foi recém-publicado pela Relicário, com tradução da excelente Adriana Lisboa, e tem sido bem recebido pelo público e pela crítica.
Mas, afinal, o que tanto atrai os cineastas nas narrativas de Claire Keegan?
A concisão e precisão da autora se destacam – inclusive já havia destacado esse aspecto no texto de orelha. Adaptações de romances longos trabalham com cortes, diminuindo o número de enredos paralelos, juntando duas ou mais personagens em uma só, concentrando grandes saltos temporais e geográficos em episódios mais significativos.
Isso não é tão necessário nas narrativas de Keegan: as personagens são poucas, a ambientação é basicamente doméstica e poucos dias se passam na unidade básica de tempo do enredo, ainda que ela seja entrecortada por flashbacks, como no caso de Pequenas coisas.
O roteiro adaptado, assinado pelo dramaturgo, também irlandês, Enda Walsh poderia ser encenado nos palcos de todo o mundo, sem grandes mudanças. No entanto, diferente de uma peça, o filme possibilita close ups extremos na figura de Bill Furlong, já que é no seu corpo que se realiza grande parte do drama, é ali que vemos acontecer a mudança e, para usar um termo caro à narratologia, o dénouement – desatamento de nós – é físico e é possível vê-lo acontecer na constituição física de seu protagonista e foco principal.
***
A Irlanda é uma ilha pequena e pródiga em contadores de histórias, sejam elas escritas ou orais. Foram ganhadores do Nobel de Literatura seus escritores W. B. Yeats, George Bernard Shaw, Samuel Beckett e Seamus Heaney, todos eles figuras de grande importância na literatura mundial, e que contam com diversas traduções no Brasil.
Mais contemporaneamente, vários foram os prêmios literários concedidos a autoras e autores da República da Irlanda, incluindo o Booker Prize de 2023 para Paul Lynch e seu Prophet’s song (Canção do profeta, traduzido por Marta Mendonça em Portugal e inédito no Brasil) e o fenômeno editorial que é Sally Rooney, cujo Intermezzo foi publicado simultaneamente diversas línguas em todo mundo, incluído o português brasileiro, pelas mãos de Débora Landsberg, que vem traduzindo a irlandesa desde seu primeiro romance para a Companhia das Letras. Se dois dos quatro romances de Rooney também foram adaptados para as telas (no caso dela, para séries televisivas de streaming), as semelhanças entre as duas irlandesas não param por aí: ambas estão preocupadas com as sutilezas da comunicação entre as pessoas, especialmente entre homens e mulheres e entre as diferentes gerações. Há, no entanto, uma diferença marcante: embora haja espaço para o amor heterossexual nas narrativas de Keegan, como entre Bill e Eileen Furlong de Pequenas coisas ou entre o tio e a tia da menina em Foster, os laços mais importantes são aqueles construídos, ao longo das narrativas, entre desconhecidos, promovendo arranjos de sociabilidade que escapam a matriz romântica e mesmo da família nuclear e heteronormativa: outras configurações familiares aparecem como possibilidades de amor e cuidado para indivíduos tão destituídos deles.
Mas se muito do livro e do filme se passa na casa dos Furlong, uma casa católica em muitos sentidos típica, com um pai e uma mãe de família dedicados, com um número de filhas chocante para um país europeu em 1985 (cinco!), como é feita a crítica ao padrão de família? Em primeiro lugar, na criação de Bill: de pai desconhecido, criado por uma mãe solo, ao ver-se órfão ele passa a ser criado pela patroa da mãe, uma viúva de guerra de origem protestante e herdeira das terras do marido. Muito mais amorosa no filme que no livro, a Sra. Wilson (Michelle Fairley, mais conhecida por aqui como Catelyn Stark de Game of Thrones) assume, mesmo antes da morte da jovem Sarah, parte dos cuidados de Bill, juntamente com o caseiro Ned.
Criado por duas mulheres de gerações, religiões e classes bem distintas, Bill acaba tendo muito mais oportunidades do que se esperaria de alguém nascido fora do casamento, uma instituição tão importante para a ultraconservadora República da Irlanda, onde o divórcio tornou-se legal apenas em 1996, por meio de emenda à constituição que, muito influenciada pelo catolicismo dominante, até então vedava essa possibilidade, assim como a homossexualidade, que permaneceu ilegal até 1993, mesmo ano da liberalização da venda do uso de contraceptivos sem necessidade de receita médica.
Em segundo lugar, temos a outra “casa” onde se passa a trama: uma casa de Deus, o convento de freiras onde estão alojadas dezenas de mulheres, num tipo de instituição conhecida como Casas de Penitência e Remissão, por vezes Casas de Mãe e Bebê ou, ainda, Lavanderias de Madalena, em referência à mais conhecida penitente e discípula de Jesus. Essas instituições são pouco conhecidas no Brasil, o caso mais famoso sendo o do Lar de Mães e Bebês do Bom Socorro na cidade de Tuam, cujas escavações em 2014 revelaram “quantidades significativas de restos humanos” em pelo menos 17 das 20 câmaras subterrâneas examinadas, segundo reportagem do El País.
A existência dessas instituições e a forma como lidavam com as mulheres revelam a falência do ideal da família católica, pautado na repressão e abstinência sexual antes do casamento, assim como a proibição do uso de anticoncepcionais e questões legais do direito sucessório que dificultavam o casamento entre homens e mulheres jovens, sem falar na impossibilidade do aborto seguro e legal, que até 2018 era banido em todos os casos, com leis ainda mais restritivas do que a já draconiana lei brasileira.
O resultado foram as milhares de mulheres que passaram pelas diferentes formas desse tipo de instituição de aprisionamento de irlandesas que, por diferentes razões, incluindo-se estupros, tinham sua sexualidade e seus corpos controlados pela colusão de Estado e Igreja. E não se tratava apenas de controle, mas também de lucro, uma vez que tanto os frutos de seu trabalho, no caso das lavanderias, quanto os próprios bebês eram comercializados, por meio de adoções internacionais, especialmente para os Estados Unidos, onde a compra de bebês não era (e ainda não é) ilegal, devido à existência de instituições privadas de adoção.
Bill Furlong entende que, não fosse a Sra. Wilson, muito provavelmente sua mãe também teria sido levada ao convento como “Madalena”, e ele mesmo talvez fosse para um orfanato, locais onde outro tipo de abuso eclesiástico ocorreu a tantos meninos e meninas não só na Irlanda, mas em todo o mundo. O ostracismo a que ele é exposto por ser um filho “bastardo” (o xingamento que ele se recusa a repetir quando inquirido pela Sra. Wilson após voltar pra casa com o casaco coberto por cusparadas) nem se compara ao que poderia ter ocorrido não fosse o acolhimento da Sra. Wilson.
Se, por um lado, é complicado, sob o ponto de vista político, ver uma mulher rica protestante como salvadora de uma família católica pobre (Eileen Furlong diz ao marido que, afinal de contas, a Sra. Wilson, do alto de sua casa, era a única mulher da cidade que podia fazer o que queria), ou um homem como o herói que quebra o pacto de silêncio de toda uma cidade, é interessante ver como se dá a quebra dos papéis de gênero nas narrativas de Keegan, tanto aqui quanto em Foster. Quem tem “o coração mole” é Bill, não a pragmática Eileen Furlong (Eileen Walsh). Se, por um lado, Eileen por horas parece excessivamente materialista e individualista, seu carinho pelas filhas, visível no filme na forma como ela orquestra a feitura coletiva do bolo de Natal, lhe dá uma motivação compreensível.
A escolha de Eileen Walsh, assim como a de Michelle Fairley, não se deve apenas ao fato de a Irlanda ser uma ilha pequena. Ambas as atrizes participaram de outros filmes de temática parecida, no caso de Fairley, uma ponta em Philomena (2013, dir. Stephen Frears), estrelado por Judi Dench como uma mãe irlandesa cujo filho foi tomado por freiras. Já a escalação de Walsh me interessa por diversos motivos. Em primeiro lugar, algo que também acontece em filmes de países outros que os EUA, temos uma mulher que é apenas um ano mais nova do que seu par romântico (Murphy tem 48 anos, e Walsh, 47) e que foge dos padrões de beleza: dentuça e com olhos esbugalhados, ela não tem a beleza de Emily Blunt, nem mesmo de Florence Pugh, vértices do triângulo romântico com quem Murphy contracenou em Oppenheimer. No entanto, Walsh e Murphy trabalharam juntos na peça Disco pigs (1996), escrita por Enda e interpretada por Eileen e Cillian, sendo que este último reprisou o papel na adaptação da peça para o cinema, em filme de 2001. Murphy também aparece como produtor do filme e a escalação de Enda Walsh para o roteiro dá continuidade a uma parceria de anos: eu mesma tive o prazer de ver Murphy ao vivo na peça Ballyturk em 2014.
Para além desse histórico de colaborações, o casting de Eileen Walsh como a relutante esposa de Furlong revela uma importante relação intertextual: Walsh foi uma das protagonistas do filme The Magdalene sisters (2002, dir. Peter Mullan), lançado no Brasil dois anos depois como Em nome de deus. No longa, Walsh é uma das quatro “pecadoras” encarceradas em um Asilo de Madalenas, mais especificamente uma jovem mãe solo cuja deficiência intelectual a torna alvo preferencial para abuso sexual nas mãos de um dos padres do convento e aquela cujo fim é o mais trágico das quatro, já que ela morre jovem e encarcerada em outra instituição de controle de dissidências, um manicômio.
Ver Eileen Walsh como a atriz num filme que, como o documentário em que foi baseado (Sex in a cold climate, 1998, dir. Steve Humphries) e a peça Eclipsed (1992), escrita por Patricia Burke Brogan, ajudou a chamar atenção da sociedade irlandesa e do resto do mundo para os crimes cometidos contra as mulheres pela Igreja com a anuência (e financiamento) do estado irlandês, ocupando, neste novo filme, a posição não mais de uma “penitente”, mas sim de quem acha que nada daquilo tem a ver com ela, é um choque para quem a reconhece.
Diferentemente de Pequenas coisas, tanto os filmes (os dois ficcionais e o documentário) quanto a peça são muito mais explícitos na exposição da chaga irlandesa que foram essas instituições de controle e contenção. Acontece que nem o livro de Keegan nem o filme adaptado dele querem ter essa função didática. Eles partem do pressuposto de que, assim como o resto da cidade de New Ross, o público também não precisa (e talvez nem queira) saber exatamente o que acontece ali.
Na narrativa escrita, lemos sobre boatos e testemunhamos, junto com Bill Furlong, apenas pedaços da experiência; já o filme, que faz bom uso da faixa de áudio da mídia audiovisual, traz o choro insistente de bebês que jamais são de fato vistos, apenas ouvidos ao longe. O olho de Bill e o olho da câmera, posicionada logo acima de seu ombro e com visão de sua nuca, oferece uma visão fragmentada, assim como a reação de Bill no lugar do que ele realmente vê. Ele é o foco da narrativa e sua experiência é nosso centro moral. A repetição de ações cotidianas como o lavar das mãos ao chegar em casa, o dirigir do caminhão (nós somos levadas ao convento na caçamba, a câmera como um ponto de vista dentre os sacos de carvão) traduzem para o cinema o ritmo narrativo que replica características do próprio Bill: meticuloso, considerado, mas ainda assim decidido.
Nesse sentido, o filme faz uma adaptação coerente da narrativa de Keegan, oferecendo vislumbres de uma história muito maior, que cabe a quem assiste, como a quem lê, explorar mais, fazendo para si uma jornada de descoberta como a de seu protagonista.
Maria Rita Drummond Viana é leitora, pesquisadora, professora e tradutora. Especialista em estudos irlandeses, é vice-presidente da International Yeats Society. Seu trabalho com as escritas de vida (autobiografias, diários, cartas, memórias e outros gêneros não ficcionais e híbridos) reacendeu seu interesse em Virginia Woolf e levou à criação, com colegas de todo Brasil, do KEW, o primeiro grupo de pesquisa dedicado aos estudos woolfianos no Brasil. Pela Relicário, traduziu Constelações, de Sinéad Gleeson, convidada da Flip 2023.
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