Escrevo-lhe uma carta sem minha letra. Poderemos falar nisso em outra carta, se você assim o quiser. Sobre caligrafia e o desenho impresso no papel pelo gesto da mão e do aprendizado da linguagem. É um assunto do meu interesse, porque vivi angustiada com minha letra demoníaca na infância. Ilegível. Mas, para o que quero no momento, é melhor escrever usando a forma de um Calibri corpo 11.
Te chamo de amiga também por causa do teu ensaio publicado na revista Z Cultural. Menos amiga da mulher de cabelos ruivos, com quem nunca troquei segredos ou chorei abraçada (e acho que não nos faltariam motivos pra isso), e mais amiga da menina e da mulher que diante do boi da infância e do boi a quem dita a morte, escreve. Pergunta-se. Oferece o coração.
Convoco a minha própria menina e a mulher de hoje para essa conversa com aquelas duas. Mais por uma necessidade minha, é claro. Porque, apesar de nunca ter apontado os dedos em direção a um determinado boi nem ao menos comer carne de boi desde os 18 anos, sinto-me familiarmente estranha ao mundo animal desde sempre. E teu livro Uma exposição me fez relembrar disso, ou de mim, não sei bem. Quem sabe ao longo dessa carta eu possa organizar ou descobrir algo.
Ao contrário de você, sempre vivi em apartamentos. Embaixo, o asfalto. A praia, logo ali, já que nasci e sempre morei entre os mesmos cinco quilômetros quadrados, é minha primeira memória da natureza. Bem diferente de rios, fazendas, mato. Aprendi a nadar no mar, e lembro de peixes-voadores no mar de Copacabana. Dos pequenos buracos na areia, eu retirava os tatuís, jogava-os num balde e, antes de ir embora, libertava-os. Eles corriam a se esconder sob a areia molhada. Pequena deusa que escolhe quem vive ou morre. E não é assim toda criança? Em algum momento da história, imputamos às crianças a inocência. Tentamos domesticá-las como nossos antepassados domesticaram cães. Ensinamos apenas às crianças a mentir, no melhor dos casos, ou a culpa. Porque a criança é uma selvagem. Um ser desejante. Que tanto pode demonstrar uma empatia surpreendente quanto o desejo de matar apenas um tatuí, aquele, o escolhido, entre suas pequenas mãos. Para no minuto seguinte se arrepender. E querer reviver o tatuí. E descobrir que esta é a diferença entre ela e Deus. Que Deus tudo pode, inclusive reviver os mortos. E ela – talvez seja minha essa lembrança ou a desejei, não faz diferença –, não. Esse é o momento em que a infância acaba.
Não sei se o boi que não servia pra canga sabia que iria morrer no dia seguinte, cara amiga escritora. Mas e você? Você sabia. E mesmo a morte sendo a natureza da vida numa fazenda, só posso imaginar, a morte desse boi lhe ensinou que tudo deveria ter um uso para não morrer. Ao menos foi assim que li ou precisei ler. Penso nisso e penso na pandemia. E penso nesse mundo de bosta em que estamos vivendo, bem antes da pandemia até. O vírus só apareceu para nos lembrar que também nós, nossa espécie, somos escolhidos para morte como quem traz um número na orelha. Vamos lá, matem o 45. Com a diferença de que não olhamos nos olhos dos nossos carrascos. O olhar. Tão sobrevalorizado pela nossa espécie. Coisa de primatas.
Na minha vida de menina assassinei inúmeros peixes, como Clarice Lispector mãe. Eu queria um cachorro. “Nem pensar”, dizia minha mãe. Meu pai se calava. Eu era tão solitária e tão louca para ter um cão que ia de porta em porta no meu prédio e pedia aos donos para passear com seus cães. Claro que os donos ficavam felizes, até porque naquela época ninguém precisava recolher cocô da rua. E os cães mais ainda. Eu tinha nove anos de idade. Durante anos chorei para ter cães e recebi peixinhos em aquários redondos sem oxigenação. O máximo que consegui foi um daqueles jabutizinhos vendidos nas feiras. Cumprindo uma programação muito bem-sucedida, matei todos por amor. Amassei durante tanto tempo e continuamente o jabuti entre meus braços que seu casco foi ficando mole, até ele morrer. Coloquei seu corpinho dentro de uma caixa de perfume antes de jogá-lo no lixo. Não há terra na cidade. Dos peixes, acabei desistindo. Primatas. Queremos abraços. Os mesmos abraços que agora nos faltam. E minha mãe me dava peixes. Em sua defesa, digo que era uma mulher que trabalhava muito. E, como todas as mães, sabia que o trabalho sujo de cuidar do cão iria sobrar para ela. Mas não é assim que as mães começam a desacreditar dos filhos? Mesmo sem intenção. Tu não serás capaz de cuidar do próprio cão. Disse a mãe ao descer do monte com dois tablets. E o pai lê jornal na sala de jantar.
E o boi olha.
Giovanna Dealtry é crítica literária e professora da Uerj. Publicou, entre outros, Clara Nunes:Guerreira e co-organizou O futuro pelo retrovisor: Inquietações sobre a literatura brasileira contemporânea. Em 2021, organizou a nova edição de Vida vertiginosa, de João do Rio.
A ESCRITA COMO DESAFIO E APERFEIÇOAMENTO DO ERRO Por Ieda Magri & Felipe Charbel No ano passado organizamos com o Rafael Gutiérrez uma coletânea de ensaios para a Relicário. A ideia era simples: cada um escreveria sobre o que bem entendesse, da forma como desejasse. Foi nossa única orientação. Se fosse para o livro …
COSTURAR PARA FORA por Ana Elisa Ribeiro Em algum momento da adolescência, alguém tentou me ensinar a fazer crochê. A lembrança vem vaga, frouxa. Lembro de minha mãe me comprar agulha e linhas, mas também da minha sensação clara de que não levava o menor jeito para a tarefa. Talvez por isso mesmo eu …
Nesta coluna Alfaiataria de outubro, Adriana Lisboa nos surpreende com um belo presente de aniversário pelos 8 anos da Relicário! Ela nos brinda com poesia inédita –– um verdadeiro deleite –– e divide conosco seu sentimento por fazer parte de nossa história e de nosso catálogo, já por incríveis três anos: dois livros de poesia, …
MEMÓRIAS DE UM LIVREIRO por José Luiz Tahan, da Realejo Livros Nunca passou pela minha cabeça que a sequência de recados errados me levariam a esta vida vivida numa livraria. Há trinta e poucos anos eu era um garoto que gostava de desenhar e quando decidi buscar um emprego não tinha muita ideia do …
COLUNA LIVRE
CARTA A UMA AMIGA
por Giovanna Dealtry
Querida amiga escritora,
Escrevo-lhe uma carta sem minha letra. Poderemos falar nisso em outra carta, se você assim o quiser. Sobre caligrafia e o desenho impresso no papel pelo gesto da mão e do aprendizado da linguagem. É um assunto do meu interesse, porque vivi angustiada com minha letra demoníaca na infância. Ilegível. Mas, para o que quero no momento, é melhor escrever usando a forma de um Calibri corpo 11.
Te chamo de amiga também por causa do teu ensaio publicado na revista Z Cultural. Menos amiga da mulher de cabelos ruivos, com quem nunca troquei segredos ou chorei abraçada (e acho que não nos faltariam motivos pra isso), e mais amiga da menina e da mulher que diante do boi da infância e do boi a quem dita a morte, escreve. Pergunta-se. Oferece o coração.
Convoco a minha própria menina e a mulher de hoje para essa conversa com aquelas duas. Mais por uma necessidade minha, é claro. Porque, apesar de nunca ter apontado os dedos em direção a um determinado boi nem ao menos comer carne de boi desde os 18 anos, sinto-me familiarmente estranha ao mundo animal desde sempre. E teu livro Uma exposição me fez relembrar disso, ou de mim, não sei bem. Quem sabe ao longo dessa carta eu possa organizar ou descobrir algo.
Ao contrário de você, sempre vivi em apartamentos. Embaixo, o asfalto. A praia, logo ali, já que nasci e sempre morei entre os mesmos cinco quilômetros quadrados, é minha primeira memória da natureza. Bem diferente de rios, fazendas, mato. Aprendi a nadar no mar, e lembro de peixes-voadores no mar de Copacabana. Dos pequenos buracos na areia, eu retirava os tatuís, jogava-os num balde e, antes de ir embora, libertava-os. Eles corriam a se esconder sob a areia molhada. Pequena deusa que escolhe quem vive ou morre. E não é assim toda criança? Em algum momento da história, imputamos às crianças a inocência. Tentamos domesticá-las como nossos antepassados domesticaram cães. Ensinamos apenas às crianças a mentir, no melhor dos casos, ou a culpa. Porque a criança é uma selvagem. Um ser desejante. Que tanto pode demonstrar uma empatia surpreendente quanto o desejo de matar apenas um tatuí, aquele, o escolhido, entre suas pequenas mãos. Para no minuto seguinte se arrepender. E querer reviver o tatuí. E descobrir que esta é a diferença entre ela e Deus. Que Deus tudo pode, inclusive reviver os mortos. E ela – talvez seja minha essa lembrança ou a desejei, não faz diferença –, não. Esse é o momento em que a infância acaba.
Não sei se o boi que não servia pra canga sabia que iria morrer no dia seguinte, cara amiga escritora. Mas e você? Você sabia. E mesmo a morte sendo a natureza da vida numa fazenda, só posso imaginar, a morte desse boi lhe ensinou que tudo deveria ter um uso para não morrer. Ao menos foi assim que li ou precisei ler. Penso nisso e penso na pandemia. E penso nesse mundo de bosta em que estamos vivendo, bem antes da pandemia até. O vírus só apareceu para nos lembrar que também nós, nossa espécie, somos escolhidos para morte como quem traz um número na orelha. Vamos lá, matem o 45. Com a diferença de que não olhamos nos olhos dos nossos carrascos. O olhar. Tão sobrevalorizado pela nossa espécie. Coisa de primatas.
Na minha vida de menina assassinei inúmeros peixes, como Clarice Lispector mãe. Eu queria um cachorro. “Nem pensar”, dizia minha mãe. Meu pai se calava. Eu era tão solitária e tão louca para ter um cão que ia de porta em porta no meu prédio e pedia aos donos para passear com seus cães. Claro que os donos ficavam felizes, até porque naquela época ninguém precisava recolher cocô da rua. E os cães mais ainda. Eu tinha nove anos de idade. Durante anos chorei para ter cães e recebi peixinhos em aquários redondos sem oxigenação. O máximo que consegui foi um daqueles jabutizinhos vendidos nas feiras. Cumprindo uma programação muito bem-sucedida, matei todos por amor. Amassei durante tanto tempo e continuamente o jabuti entre meus braços que seu casco foi ficando mole, até ele morrer. Coloquei seu corpinho dentro de uma caixa de perfume antes de jogá-lo no lixo. Não há terra na cidade. Dos peixes, acabei desistindo. Primatas. Queremos abraços. Os mesmos abraços que agora nos faltam. E minha mãe me dava peixes. Em sua defesa, digo que era uma mulher que trabalhava muito. E, como todas as mães, sabia que o trabalho sujo de cuidar do cão iria sobrar para ela. Mas não é assim que as mães começam a desacreditar dos filhos? Mesmo sem intenção. Tu não serás capaz de cuidar do próprio cão. Disse a mãe ao descer do monte com dois tablets. E o pai lê jornal na sala de jantar.
E o boi olha.
Giovanna Dealtry é crítica literária e professora da Uerj. Publicou, entre outros, Clara Nunes: Guerreira e co-organizou O futuro pelo retrovisor: Inquietações sobre a literatura brasileira contemporânea. Em 2021, organizou a nova edição de Vida vertiginosa, de João do Rio.
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