Nunca passou pela minha cabeça que a sequência de recados errados me levariam a esta vida vivida numa livraria. Há trinta e poucos anos eu era um garoto que gostava de desenhar e quando decidi buscar um emprego não tinha muita ideia do que buscaria, simplesmente levava uma pasta com meus desenhos e caminhava pela cidade de Santos. Era 1990. Fui em agência de publicidade mostrar os desenhos, o rapaz gostou, mas disse que sem experiência era bem difícil eu arranjar uma oportunidade. Com esse enigma na cabeça, claro, disse ao homem que, se ninguém desse a primeira chance, eu não teria experiência no futuro. O homem se calou, arrumei meus desenhos e segui a pé por aí, sem método. Depois de fazer fichas em lojas de departamento, locadora de filmes e loja de fotografias, resolvi visitar uma livraria. Essa livraria sempre me acolheu, até numa das acolhidas ela, a livraria, foi providencial, eu estava fugindo de uma briga que comecei com dois amigos no interior do cinema vizinho. Quando a luz acendeu, eram muitos os inimigos – resolvemos bater em retirada, acho que o filme era Jogos de guerra, eu tinha uns dez anos, também xeretava HQs nessa livraria, Flash Gordon, Príncipe Valente, Asterix e Moebius, pouco dinheiro, muitos desejos.
Nessa época não tinha telefone. Minha família experimentava uma fase dura, e eu recorria a um telefone de uma senhora amiga para os recados. Depois do período de muitas visitas aos locais que poderiam me chamar para trabalhar, vivi uns dias de expectativa, depois uns dias de vazio, de angústia. O telefone tocou e a senhora me trouxe o recado, só que o recado estava torto, incompleto, quase uma charada. Ela me disse que um tal de Zé não-sei-o-quê me chamou para trabalhar, ela completou, Zé Pedro, eu acho. Fiquei olhando para ela na expectativa de mais informações. Irritada, ela disse que era para eu deixar de ser preguiçoso, braço curto e ir logo atrás da oportunidade.
Foi o que fiz, peguei novamente a pasta de desenhos – me sentia melhor, mais seguro – e voltei aos endereços que visitei. Nenhum Zé Pedro. Fui novamente à tal livraria, a Livraria Iporanga e revi o sujeito simpático que se sentava no caixa, repeti que um Zé não-sei-o-quê me ligou. O homem, Luigi o nome dele, então começou a puxar papo comigo. Eu disse que minha mãe era professora de português e que gostava de ler. Expliquei que precisava de um emprego para poder fazer faculdade de arquitetura. Luigi resolveu me contratar mesmo sem precisar de um funcionário.
Daquele início torto até os anos da peste do Covid, aprendi o ofício de livreiro na prática, num balcão de uma livraria. Minha curiosidade e ambição me empurraram para me tornar sócio daquela livraria, a Iporanga, que não só fechou as portas em 2004, como foi demolida. Nós só paramos aquela história porque também o cinema foi demolido e, com ele, todo o prédio que habitávamos.
A Realejo nasceu nesse meio-tempo, em 2001, dentro de uma faculdade de Filosofia, com a porta aberta para rua, atendendo tanto os professores como os alunos, além de clientes curiosos. Colecionei experiências e erros que me custaram dinheiro e reputação. O principal equívoco foi não perceber quais eram minhas características como livraria. Apesar de gostar de ter feito o trabalho de uma livraria de faculdade, aquele não era o perfil do meu negócio – me chateava atender alunos praguejando por ter que comprar um livro, me chateava por ver que havia cópia pirata por todos os lados.
Meu empreendimento mais arriscado aconteceu perto de 2007, quando fui convidado por um shopping da cidade para montar uma livraria. Fui seduzido pela ideia de crescer, aquilo sempre rondava a minha cabeça. Naquela época já havia a Realejo Livros de rua, na Marechal Deodoro, lá inauguramos em 2003 e tive um sócio ilustre, o escritor José Roberto Torero – continuamos amigos, mas a sociedade durou de 2003 a 2005.
No shopping montei uma livraria linda, mas incompleta. Não tinha a liberdade da rua, o bar café, os eventos até altas horas, a bagunça, os debates sem fim. Os clientes eram mais frios, mesmo assim ela foi bem, até estourar a crise de 2008. Meus grandes erros foram demorar a tomar decisões e acreditar que aguentaria os prejuízos, talvez por vergonha de fechar as portas.
Em 2010 precisei fechar as portas. Nesse meio-tempo, entendi o que sou: um gerador de conteúdo. Somei à livraria uma editora, a Realejo Edições, criei também um festival internacional de literatura, a Tarrafa Literária em 2009 e, na pandemia, comecei com dois amigos e sócios, um clube de assinaturas, o Clube Realejo.
Hoje habito a livraria de rua, nela recebo meus amigos e clientes, sigo sendo livreiro antes de tudo, sigo resmungando quando alguém me pergunta onde eu ganho dinheiro porque a livraria, né? Eu respondo, amigo, a livraria é onde tudo nasceu, onde erramos e acertamos todos os dias, é por ela, pela saúde dela que trabalhamos. Não me venha com esse papo de resistência, resiliência. Sou um livreiro porque gosto e porque acredito no negócio do livro.
Acho que não terminei a história lá do começo, do recado torto de telefone, então vamos lá. Estávamos eu e o Luigi num botequim, já com algumas bolachas de choppe na mesa quando ele, um distraído em nível hard, volta ao assunto. Disse ele: Que puta história a sua aqui com a gente, né? Eu apenas bebi o chope e disse que achava uma história de teimosia. Afinal, voltei em todos os lugares que havia pedido emprego e recebi não em todos, inclusive na Iporanga. Aí veio a revelação: na minha primeira visita à livraria tinha mais uma pessoa no balcão além de mim e do Luigi – era o Armando, amigo de longa data e dono de um bar. Ele pediu o meu telefone para o Luigi, pois foi com a minha cara. Disse que ligaria e me convidaria para que fosse garçom em seu bar, o bar que atendia pelo nome de Ze…pelim.
O recado torto me levou para essa vida de livreiro, uma vida que me orgulho e que, em meio a uma pandemia, em meio ao medo de adoecer entregando livros debaixo de sol e chuva, chegamos a 20 anos de história.
Estamos no caminho, com saúde e uma porrada de sonhos. Sigamos todos.
José Luiz Tahan é sócio-fundador da Realejo Livros, que, em 2021, completa 20 anos.
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CARTA A UM AMIGO DISTANTE por Adriana Lisboa “Distante”, eu escrevo. E logo me pergunto como medimos as distâncias. Quantas vezes a impressão é de que o mais distante é o que nos ladeia, tamanha a incomunicabilidade, tamanha a extensão das trincheiras. Um homem berra na cara de outro e sei que eles …
ALEGRIA E RESISTÊNCIA por Adriana Lisboa A travessia destes tempos pode parecer, muitas vezes, o escuro interior de um túnel de extensão indefinida. Noutros momentos, é um rio de terceiras margens. Ou então um sertão-deserto de pendor bíblico, com a diferença de que, na fórmula do ódio contemporâneo, os deuses andam arredios, sem saber …
COLUNA LIVRE
MEMÓRIAS DE UM LIVREIRO
por José Luiz Tahan, da Realejo Livros
Nunca passou pela minha cabeça que a sequência de recados errados me levariam a esta vida vivida numa livraria. Há trinta e poucos anos eu era um garoto que gostava de desenhar e quando decidi buscar um emprego não tinha muita ideia do que buscaria, simplesmente levava uma pasta com meus desenhos e caminhava pela cidade de Santos. Era 1990. Fui em agência de publicidade mostrar os desenhos, o rapaz gostou, mas disse que sem experiência era bem difícil eu arranjar uma oportunidade. Com esse enigma na cabeça, claro, disse ao homem que, se ninguém desse a primeira chance, eu não teria experiência no futuro. O homem se calou, arrumei meus desenhos e segui a pé por aí, sem método. Depois de fazer fichas em lojas de departamento, locadora de filmes e loja de fotografias, resolvi visitar uma livraria. Essa livraria sempre me acolheu, até numa das acolhidas ela, a livraria, foi providencial, eu estava fugindo de uma briga que comecei com dois amigos no interior do cinema vizinho. Quando a luz acendeu, eram muitos os inimigos – resolvemos bater em retirada, acho que o filme era Jogos de guerra, eu tinha uns dez anos, também xeretava HQs nessa livraria, Flash Gordon, Príncipe Valente, Asterix e Moebius, pouco dinheiro, muitos desejos.
Nessa época não tinha telefone. Minha família experimentava uma fase dura, e eu recorria a um telefone de uma senhora amiga para os recados. Depois do período de muitas visitas aos locais que poderiam me chamar para trabalhar, vivi uns dias de expectativa, depois uns dias de vazio, de angústia. O telefone tocou e a senhora me trouxe o recado, só que o recado estava torto, incompleto, quase uma charada. Ela me disse que um tal de Zé não-sei-o-quê me chamou para trabalhar, ela completou, Zé Pedro, eu acho. Fiquei olhando para ela na expectativa de mais informações. Irritada, ela disse que era para eu deixar de ser preguiçoso, braço curto e ir logo atrás da oportunidade.
Foi o que fiz, peguei novamente a pasta de desenhos – me sentia melhor, mais seguro – e voltei aos endereços que visitei. Nenhum Zé Pedro. Fui novamente à tal livraria, a Livraria Iporanga e revi o sujeito simpático que se sentava no caixa, repeti que um Zé não-sei-o-quê me ligou. O homem, Luigi o nome dele, então começou a puxar papo comigo. Eu disse que minha mãe era professora de português e que gostava de ler. Expliquei que precisava de um emprego para poder fazer faculdade de arquitetura. Luigi resolveu me contratar mesmo sem precisar de um funcionário.
Daquele início torto até os anos da peste do Covid, aprendi o ofício de livreiro na prática, num balcão de uma livraria. Minha curiosidade e ambição me empurraram para me tornar sócio daquela livraria, a Iporanga, que não só fechou as portas em 2004, como foi demolida. Nós só paramos aquela história porque também o cinema foi demolido e, com ele, todo o prédio que habitávamos.
A Realejo nasceu nesse meio-tempo, em 2001, dentro de uma faculdade de Filosofia, com a porta aberta para rua, atendendo tanto os professores como os alunos, além de clientes curiosos. Colecionei experiências e erros que me custaram dinheiro e reputação. O principal equívoco foi não perceber quais eram minhas características como livraria. Apesar de gostar de ter feito o trabalho de uma livraria de faculdade, aquele não era o perfil do meu negócio – me chateava atender alunos praguejando por ter que comprar um livro, me chateava por ver que havia cópia pirata por todos os lados.
Meu empreendimento mais arriscado aconteceu perto de 2007, quando fui convidado por um shopping da cidade para montar uma livraria. Fui seduzido pela ideia de crescer, aquilo sempre rondava a minha cabeça. Naquela época já havia a Realejo Livros de rua, na Marechal Deodoro, lá inauguramos em 2003 e tive um sócio ilustre, o escritor José Roberto Torero – continuamos amigos, mas a sociedade durou de 2003 a 2005.
No shopping montei uma livraria linda, mas incompleta. Não tinha a liberdade da rua, o bar café, os eventos até altas horas, a bagunça, os debates sem fim. Os clientes eram mais frios, mesmo assim ela foi bem, até estourar a crise de 2008. Meus grandes erros foram demorar a tomar decisões e acreditar que aguentaria os prejuízos, talvez por vergonha de fechar as portas.
Em 2010 precisei fechar as portas. Nesse meio-tempo, entendi o que sou: um gerador de conteúdo. Somei à livraria uma editora, a Realejo Edições, criei também um festival internacional de literatura, a Tarrafa Literária em 2009 e, na pandemia, comecei com dois amigos e sócios, um clube de assinaturas, o Clube Realejo.
Hoje habito a livraria de rua, nela recebo meus amigos e clientes, sigo sendo livreiro antes de tudo, sigo resmungando quando alguém me pergunta onde eu ganho dinheiro porque a livraria, né? Eu respondo, amigo, a livraria é onde tudo nasceu, onde erramos e acertamos todos os dias, é por ela, pela saúde dela que trabalhamos. Não me venha com esse papo de resistência, resiliência. Sou um livreiro porque gosto e porque acredito no negócio do livro.
Acho que não terminei a história lá do começo, do recado torto de telefone, então vamos lá. Estávamos eu e o Luigi num botequim, já com algumas bolachas de choppe na mesa quando ele, um distraído em nível hard, volta ao assunto. Disse ele: Que puta história a sua aqui com a gente, né? Eu apenas bebi o chope e disse que achava uma história de teimosia. Afinal, voltei em todos os lugares que havia pedido emprego e recebi não em todos, inclusive na Iporanga. Aí veio a revelação: na minha primeira visita à livraria tinha mais uma pessoa no balcão além de mim e do Luigi – era o Armando, amigo de longa data e dono de um bar. Ele pediu o meu telefone para o Luigi, pois foi com a minha cara. Disse que ligaria e me convidaria para que fosse garçom em seu bar, o bar que atendia pelo nome de Ze…pelim.
O recado torto me levou para essa vida de livreiro, uma vida que me orgulho e que, em meio a uma pandemia, em meio ao medo de adoecer entregando livros debaixo de sol e chuva, chegamos a 20 anos de história.
Estamos no caminho, com saúde e uma porrada de sonhos. Sigamos todos.
José Luiz Tahan é sócio-fundador da Realejo Livros, que, em 2021, completa 20 anos.
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