Escrito em prosa poética, Brilha como vida pode ser lido como um romance de formação em estilhaços. Da poeta que escreve, no internato, “palavras como alavancas, martelos, flechas apontadas contra algo que vibra e não tem nome ou palavra” à escritora que encontra nas palavras a “pedra filosofal, o laboratório alquímico onde qualquer dor é entregue de volta ao mundo como beleza”. Ione, cujos corpo e mente se decompõem em vida, volta na escrita de Maria Grazia como chama. Como disse Andrea Cortellessa, crítico literário italiano: “Isto não é um romance, não é uma autobiografia: é a explosão de uma estrela”.
A jornalista e mediadora de leitura Claudia Lamego participou do evento gratuito Janela para o Mundo e apresentou o livro Brilha como vida, com Maria Grazia Calandrone, no Istituto Italiano di Cultura di Rio de Janeiro. No encontro, no qual Calandrone realizou noite de autógrafos, estiveram presentes alunos do instituto, discentes da UFF e leitoras do clube Janela para o Mundo, da Janela Livraria. Um verdadeiro sucesso! E nesta quarta, dia 5, às 18h, Calandrone estará no Istituto Italiano di Cultura San Paolo para laboratório poético e encontro com o clube Leia Mulheres e alunos do instituto. Livros à venda no local com a Livraria da Vila.
E com vocês, o texto de Cláudia.
Escrever para existir
Lésbica, muçulmana e única filha a nascer fora da Argélia. A autora Fatima Daas, sob pseudônimo, escreve que, num subúrbio de Paris, nasceu de cesariana, “do latim caedere: talhar, cortar”. Em A última filha, Fatima Daas, a personagem em crise com sua identidade, conta que escreve para existir. Em “A bastarda”, o nascimento da autora, Violette Leduc, se dá a fórceps, espalha sangue e quase tira a vida da mãe. Ao falar sobre sua certidão de nascimento, ela escreve: “Releio-a do início ao fim e vejo a mim mesma outra vez no longo túnel que reverberou o som da tesoura do obstetra. […] Aqui estou eu, nascida num registro de cartório, pelas mãos de um escrivão. Sem nódoas, sem placenta: nascida na escrita, apenas um registro”. Sem pai, bastarda.
As duas escritoras francesas recorrem ao momento do nascimento para elaborar um lugar no mundo, na relação com suas mães. Ao contrário das duas, Maria Grazia Calandrone recorre a um parto ocorrido ao avesso, no dia em que sua mãe cortou o cordão umbilical que as unia, mas com palavras. A italiana, filha adotiva de Ione, uma professora de Letras, e Giacomo Calandrone, ativista político e deputado do partido comunista italiano, soube que sua “Mamãe Verdadeira” era outra com quatro anos de idade.
“Podemos então relatar o momento da revelação da notícia minúscula como um parto com palavras, acompanhado por um imenso derramamento de sangue.
Mãe agora sabia que eu sabia que o seu sangue não era o meu sangue.
Mãe acreditava que o amor não pudesse se tornar sangue.
Errava, por insegurança e excesso de lógica. Mas foi assim.”
Uma história que se completa em cada leitura
O revés de um parto, que na música de Chico Buarque (“Pedaço de mim”) é a saudade de um filho que já se foi. Ione, que adotou a filha abandonada de uma moça que se suicidou aos 18 anos, quis antecipar para a pequena Maria Grazia a sua condição de “Mamãe Falsa”. “E que expressão autolesiva dirigiu contra ela mesma! Ela, que sempre tinha palavras para tudo, ela que queria escrever um romance, ela que encantava os estudantes com sua fala brilhante, dirigiu contra sua pessoa uma expressão gasta e convencional. Um efeito do pânico. Mamãe Verdadeira era a outra. Atribuir a si mesma um papel falso! Tinha inoculado no próprio corpo um quê de plástico, de moeda que não ressoa, de boneca de borracha”, escreve Maria Grazia em Brilha como vida.
Escritora, poeta, dramaturga, artista visual e jornalista, Maria Grazia revela, em nota final do livro, tê-lo escrito em “pleno junho de 2020”. Aliás, diz que a obra se escreveu. Num jorro, talvez? Em plena pandemia do coronavírus na Itália? A história nasce de um abandono, ou salvamento: sua mãe, Lucia Galante Greco (não está proibido pensar em Lenu) deixou a pequena bebê de oito meses num gramado de um bairro chique, em Roma, depois de achar-se sem condições de criá-la. Ela, que fugiu com um amante de um casamento infeliz, suicidou-se em seguida, junto com ele. Os corpos foram achados no rio Tibre.
Como disse Ieda Magri no texto de orelha, Brilha como vida é desconcertante de todos os pontos de vista. Da filha, abandonada pela primeira mãe e que se sente culpada pela loucura da outra; que, ao revelar sua “falha” ao adotá-la e não em tê-la de seu próprio útero, se afasta e supõe que não é mais amada. Da mãe que a criou a partir desse corte, da separação como autopunição. Ou da mãe que não teve escolha. Salvou a vida e se jogou na morte.
Uma obra feita de fragmentos, de “cristais límpidos e pontiagudos que machucam profundamente”, nas palavras de Nara Vidal. Uma história que se completa na leitura de cada um.
A mim, chamou a atenção também a relação com o pai, de quem a pequena Maria Grazia guarda a memória de filmes e livros, de relatos de viagens e cartões-postais e da postura de luta diante das injustiças sociais. É com o pai que ela aprende sobre política e descobre que é preciso repudiar o fascismo. A separação da mãe, ela se ressente, talvez se dê também no momento em que esse pai sai de casa. O pai que passa a ser o elo perdido de sua família.
***
Cláudia Lamego é jornalista, mediadora de clubes de leitura, com especialização em Antropologia e Desenvolvimento Cognitivo pela UFF e Literatura e Arte pela PUC-Rio. Atua no mercado editorial desde 2014 e atualmente é coordenadora de um clube de assinatura de livros feministas.
A escrita como vício, conversa realizada em 23 de novembro de 2021, por ocasião do Circuito Marguerite Duras, teve entre os convidados/as a pesquisadora Isabela Bosi, que nos brindou com a leitura de um texto cheio de rigor e profundidade, o qual, a pedidos, reproduzimos aqui no Blog da Relicário, por ocasião da chegada de …
EGOÍSMO MEU Por Nara Vidal Há alguns anos, venho me dedicando a pequenas iniciativas que têm por objetivo divulgar literatura brasileira contemporânea onde moro. Não se trata de bondade ou altruísmo, já que são ações voluntárias. Minha relação com esse movimento é pautada no esforço da permanência de uma língua que é a minha …
ADRIENNE RICH & ANNE SEXTON Presença e poesia Nascida em 16 de maio de 1929, Adrienne Cecile Rich foi uma poeta, ensaísta e ativista feminista americana. Recebeu diversos prêmios literários, como o National Book Award, e foi reconhecida como uma das autoras mais influentes da segunda metade do século XX – dando voz à luta …
COSTURAR PARA FORA por Ana Elisa Ribeiro Em algum momento da adolescência, alguém tentou me ensinar a fazer crochê. A lembrança vem vaga, frouxa. Lembro de minha mãe me comprar agulha e linhas, mas também da minha sensação clara de que não levava o menor jeito para a tarefa. Talvez por isso mesmo eu …
COLUNA LIVRE
O REVÉS DE UM PARTO
Por Cláudia Lamego
Escrito em prosa poética, Brilha como vida pode ser lido como um romance de formação em estilhaços. Da poeta que escreve, no internato, “palavras como alavancas, martelos, flechas apontadas contra algo que vibra e não tem nome ou palavra” à escritora que encontra nas palavras a “pedra filosofal, o laboratório alquímico onde qualquer dor é entregue de volta ao mundo como beleza”. Ione, cujos corpo e mente se decompõem em vida, volta na escrita de Maria Grazia como chama. Como disse Andrea Cortellessa, crítico literário italiano: “Isto não é um romance, não é uma autobiografia: é a explosão de uma estrela”.
A jornalista e mediadora de leitura Claudia Lamego participou do evento gratuito Janela para o Mundo e apresentou o livro Brilha como vida, com Maria Grazia Calandrone, no Istituto Italiano di Cultura di Rio de Janeiro. No encontro, no qual Calandrone realizou noite de autógrafos, estiveram presentes alunos do instituto, discentes da UFF e leitoras do clube Janela para o Mundo, da Janela Livraria. Um verdadeiro sucesso! E nesta quarta, dia 5, às 18h, Calandrone estará no Istituto Italiano di Cultura San Paolo para laboratório poético e encontro com o clube Leia Mulheres e alunos do instituto. Livros à venda no local com a Livraria da Vila.
E com vocês, o texto de Cláudia.
Escrever para existir
Lésbica, muçulmana e única filha a nascer fora da Argélia. A autora Fatima Daas, sob pseudônimo, escreve que, num subúrbio de Paris, nasceu de cesariana, “do latim caedere: talhar, cortar”. Em A última filha, Fatima Daas, a personagem em crise com sua identidade, conta que escreve para existir. Em “A bastarda”, o nascimento da autora, Violette Leduc, se dá a fórceps, espalha sangue e quase tira a vida da mãe. Ao falar sobre sua certidão de nascimento, ela escreve: “Releio-a do início ao fim e vejo a mim mesma outra vez no longo túnel que reverberou o som da tesoura do obstetra. […] Aqui estou eu, nascida num registro de cartório, pelas mãos de um escrivão. Sem nódoas, sem placenta: nascida na escrita, apenas um registro”. Sem pai, bastarda.
As duas escritoras francesas recorrem ao momento do nascimento para elaborar um lugar no mundo, na relação com suas mães. Ao contrário das duas, Maria Grazia Calandrone recorre a um parto ocorrido ao avesso, no dia em que sua mãe cortou o cordão umbilical que as unia, mas com palavras. A italiana, filha adotiva de Ione, uma professora de Letras, e Giacomo Calandrone, ativista político e deputado do partido comunista italiano, soube que sua “Mamãe Verdadeira” era outra com quatro anos de idade.
“Podemos então relatar o momento da revelação da notícia minúscula como um parto com palavras, acompanhado por um imenso derramamento de sangue.
Mãe agora sabia que eu sabia que o seu sangue não era o meu sangue.
Mãe acreditava que o amor não pudesse se tornar sangue.
Errava, por insegurança e excesso de lógica. Mas foi assim.”
Uma história que se completa em cada leitura
O revés de um parto, que na música de Chico Buarque (“Pedaço de mim”) é a saudade de um filho que já se foi. Ione, que adotou a filha abandonada de uma moça que se suicidou aos 18 anos, quis antecipar para a pequena Maria Grazia a sua condição de “Mamãe Falsa”. “E que expressão autolesiva dirigiu contra ela mesma! Ela, que sempre tinha palavras para tudo, ela que queria escrever um romance, ela que encantava os estudantes com sua fala brilhante, dirigiu contra sua pessoa uma expressão gasta e convencional. Um efeito do pânico. Mamãe Verdadeira era a outra. Atribuir a si mesma um papel falso! Tinha inoculado no próprio corpo um quê de plástico, de moeda que não ressoa, de boneca de borracha”, escreve Maria Grazia em Brilha como vida.
Escritora, poeta, dramaturga, artista visual e jornalista, Maria Grazia revela, em nota final do livro, tê-lo escrito em “pleno junho de 2020”. Aliás, diz que a obra se escreveu. Num jorro, talvez? Em plena pandemia do coronavírus na Itália? A história nasce de um abandono, ou salvamento: sua mãe, Lucia Galante Greco (não está proibido pensar em Lenu) deixou a pequena bebê de oito meses num gramado de um bairro chique, em Roma, depois de achar-se sem condições de criá-la. Ela, que fugiu com um amante de um casamento infeliz, suicidou-se em seguida, junto com ele. Os corpos foram achados no rio Tibre.
Como disse Ieda Magri no texto de orelha, Brilha como vida é desconcertante de todos os pontos de vista. Da filha, abandonada pela primeira mãe e que se sente culpada pela loucura da outra; que, ao revelar sua “falha” ao adotá-la e não em tê-la de seu próprio útero, se afasta e supõe que não é mais amada. Da mãe que a criou a partir desse corte, da separação como autopunição. Ou da mãe que não teve escolha. Salvou a vida e se jogou na morte.
Uma obra feita de fragmentos, de “cristais límpidos e pontiagudos que machucam profundamente”, nas palavras de Nara Vidal. Uma história que se completa na leitura de cada um.
A mim, chamou a atenção também a relação com o pai, de quem a pequena Maria Grazia guarda a memória de filmes e livros, de relatos de viagens e cartões-postais e da postura de luta diante das injustiças sociais. É com o pai que ela aprende sobre política e descobre que é preciso repudiar o fascismo. A separação da mãe, ela se ressente, talvez se dê também no momento em que esse pai sai de casa. O pai que passa a ser o elo perdido de sua família.
***
Cláudia Lamego é jornalista, mediadora de clubes de leitura, com especialização em Antropologia e Desenvolvimento Cognitivo pela UFF e Literatura e Arte pela PUC-Rio. Atua no mercado editorial desde 2014 e atualmente é coordenadora de um clube de assinatura de livros feministas.
Posts relacionados
COLUNA LIVRE
A escrita como vício, conversa realizada em 23 de novembro de 2021, por ocasião do Circuito Marguerite Duras, teve entre os convidados/as a pesquisadora Isabela Bosi, que nos brindou com a leitura de um texto cheio de rigor e profundidade, o qual, a pedidos, reproduzimos aqui no Blog da Relicário, por ocasião da chegada de …
COLUNA LIVRE
EGOÍSMO MEU Por Nara Vidal Há alguns anos, venho me dedicando a pequenas iniciativas que têm por objetivo divulgar literatura brasileira contemporânea onde moro. Não se trata de bondade ou altruísmo, já que são ações voluntárias. Minha relação com esse movimento é pautada no esforço da permanência de uma língua que é a minha …
COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
ADRIENNE RICH & ANNE SEXTON Presença e poesia Nascida em 16 de maio de 1929, Adrienne Cecile Rich foi uma poeta, ensaísta e ativista feminista americana. Recebeu diversos prêmios literários, como o National Book Award, e foi reconhecida como uma das autoras mais influentes da segunda metade do século XX – dando voz à luta …
COLUNA MARCA PÁGINA
COSTURAR PARA FORA por Ana Elisa Ribeiro Em algum momento da adolescência, alguém tentou me ensinar a fazer crochê. A lembrança vem vaga, frouxa. Lembro de minha mãe me comprar agulha e linhas, mas também da minha sensação clara de que não levava o menor jeito para a tarefa. Talvez por isso mesmo eu …