Em meados de agosto de 2021, durante a pandemia de Covid-19, abri as portas da Livraria Jacaré, com títulos de segunda mão, no fundo de uma galeria do bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Tinha muita dúvida se as pessoas viriam – eu mesmo mal tinha tomado a primeira dose de vacina. Mas os livros não cabiam mais em casa e precisava de um espaço maior para estoque das vendas on-line. Imaginava que qualquer retorno do ponto de venda já valeria a pena.
Pessoas dos livros
A loja física trouxe outro nível de exposição para os livros, reconfigurando tudo com demandas próprias, acelerando processos e criando um ponto de contato de constante aprendizado com as pessoas.
Mês a mês, os agentes de boas-vindas e os visitantes desconfiados já me qualificaram a empreitada como ato de resistência, coragem, loucura. Para os mais comedidos, foi excentricidade mesmo. Alguns amigos comentam – como fazem, em tom de brincadeira, quando não entendem como um negócio funciona – que deve ser lavagem de dinheiro. Talvez isso tenha um tanto de projeção. De certa forma me satisfaço com as formas inusitadas que a livraria encontra para suprir as necessidades de ficção de cada um.
Às vezes me pergunto se tenho o perfil adequado para a função. Mesmo sendo a única pessoa atrás do balcão, é comum um cliente se dirigir a outro com questionamentos indiretos de atendimento, como algum comentário de leitura do tipo: “Esse não é aquele livro do Chico que dizem ser plágio do Orwell?”. E o outro cliente ainda pode muito bem achar que é uma tentativa de entabular conversa e responder que talvez ela esteja falando do Fazenda Modelo. E seguir assim até o fatídico: “Desculpa, mas eu não trabalho aqui”.
Ao fundo da loja testemunho tudo com um sorriso por trás da máscara, ao mesmo tempo que relembro quantas vezes eu mesmo não estive nessa posição, e penso que as respostas dos clientes costumam ser melhores e mais completas que as minhas.
Entre sem bater
Por vezes, a mesma dúvida também se volta para o próprio espaço da livraria. A Jacaré Livros está localizada numa galeria de brechós e cabelereiros. Acontece das pessoas se verem cercadas de livros e perguntarem: “Esses livros, que bacana, vocês compram ou vocês vendem?”, “É uma livraria ou é um sebo?”.
Num dia de chuva, um desavisado entrou perguntando por serviço de xerox. Expliquei que não era ali, mas em outra galeria. Nesse meio-tempo ele já tinha adentrado na loja. Olhou os livros ao redor e perguntou: “Isso é uma livraria?”. Passou algum tempo na sessão de biografias e voltou com um título. Entre sem bater, sobre o Aparício Torelly. Pensei que fosse comprá-lo. “Não”, respondeu ele, “esse fui eu quem escrevi”. Cumprimentei-o e tomei a única atitude possível, pedi que autografasse o exemplar. Contei a história no perfil da Jacaré no Instagram – acabei recebendo mais de dez pedidos de compra do livro. A livraria, no entanto, só tinha um único exemplar. No sebo, a gente vende um livro por vez.
Módica e selecionada
Com 15 m2 e um acervo de 5 mil livros, na minha loja tenho clientes que gostam de dizer que têm mais títulos em casa do que na Jacaré. Por uma questão de espaço e de giro, aqui é preciso escolher. Há quem chame isso de curadoria. “Títulos selecionados” é um jeito antigo de dizer, como “preços módicos”. Porém, a escassez maior é de atenção, que tem relação parecida com a leitura. É preciso foco, é preciso duração.
Todos os dias tem “novidades” publicadas nas redes sociais da livraria. Ali a gente procura demorar o olhar num detalhe, seja na orelha do livro, no sumário, na capa, numa dedicatória, num ex-líbris ou num trecho. Fico mais satisfeito comigo mesmo quando encontro tempo para compartilhar algo mais interessante do que o preço. Nas fotos, quase sempre estou lá fazendo companhia para o livro, segurando-o na mão. Gosto de pensar que estou estendendo esse livro para alguém. “Olha isso!” Às vezes acontece de o cliente que acabou de sair da loja sem reparar no título enviar mensagem pedindo para reservar. Há que buquinar.
Contudo, no comércio eletrônico de livros de segunda mão predominam os sites de marketplace – como se sabe, o exemplo mais conhecido é a Estante Virtual, com um formato de leilão de menor preço no qual as informações sobre os títulos se restringem às características físicas do exemplar. São descrições do tipo: “Pequeno corte na capa”, “mancha amarelada na folha de rosto”, “pontos de oxidação no corte do miolo”, “trechos sublinhados a lápis” etc. Mais parece um exame de corpo de delito. Na melhor das hipóteses, aparece um traço de distinção como: “Exemplar autografado pelo autor”, ou “Edição esgotada!!!” (com demasiadas exclamações). É um tanto contraintuitivo e mesmo notável que esse formato se converta em vendas. Nesse contexto, a sinopse ou o conteúdo é, de certo modo, dispensável. Trata-se de um ambiente para iniciados. No marketplace, todos já sabem o que estão procurando.
Já uma livraria de usados é território de improbabilidades que resgata e coloca em circulação títulos de bibliotecas particulares desses e de outros tempos, fora de uma agenda de consumo do momento, mas que, de alguma forma, mantêm seu apelo – um chamado que poucos objetos têm como o livro.
Encontros & pertencimento
Acontece muitas vezes de as pessoas não saberem bem o que estão procurando. Uma questão que poderia dificultar ainda mais essa busca é que até hoje não consegui colocar os títulos em ordem alfabética nas estantes. Os clientes, por sua vez, parecem não se importarem tanto. Há quem diga que é isso que mantém as pessoas tanto tempo numa sala tão pequena (a clientela é muito solidária). E, nesse garimpo, eventualmente ocorre algum encontro.
Se estou ainda aqui é porque pude contar com o apoio e a simpatia de pessoas que estão bem além da minha rede de relacionamentos, e essa adesão tem muito a ver com um desejo de pertencimento, de vizinhança, de uma ideia de cidade em que se gostaria de viver, em que certos tipos de estabelecimentos compõem uma paisagem afetiva. No caso da livraria, tem a ver com a construção de uma comunidade em torno do livro e da leitura.
Até aqui a nossa livraria encontra seus melhores momentos em situações as mais banais: quando cria uma abertura para que desconhecidos comecem a conversar sobre livros, quando uma cliente vem adiantar a leitura enquanto aguarda a sua vez na manicure em frente, quando amigos se encontram ao acaso ou (melhor ainda) marcam de se encontrar na loja, quando um cliente aparece só para recomendar um livro/disco/filme e inicia uma discussão coletiva na sala, quando testemunho o entusiasmo de um amigo apresentando um livro para outro ou reclamando do livro que não gostou (não são apenas os livros que são de segunda mão aqui, as resenhas também), quando alguém me surpreende, lendo uma dedicatória em voz alta, quando tenho ou encontro o exato livro que o cliente procura, quando mães ou pais trazem seus filhos para a livraria, quando eu segurei um bebê no colo para que a mãe pudesse olhar os livros por alguns minutos, quando uma criança trouxe seus livros para trocar na loja e na semana seguinte apareceu para comprar todos eles de volta, cada vez que um professor descobre a livraria. Toda vez que aparece um novo cliente, sempre que eles voltam.
Giuseppe Zani é jornalista com mestrado em Literatura Brasileira. Trabalhou por 15 anos com gestão de projetos culturais na Petrobras. É livreiro e criador da Jacaré Livros (jacarelivros.com.br).
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COLUNA LIVRE
“ISSO É UMA LIVRARIA?”
por Giuseppe Zani, da Jacaré Livros
Em meados de agosto de 2021, durante a pandemia de Covid-19, abri as portas da Livraria Jacaré, com títulos de segunda mão, no fundo de uma galeria do bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Tinha muita dúvida se as pessoas viriam – eu mesmo mal tinha tomado a primeira dose de vacina. Mas os livros não cabiam mais em casa e precisava de um espaço maior para estoque das vendas on-line. Imaginava que qualquer retorno do ponto de venda já valeria a pena.
Pessoas dos livros
A loja física trouxe outro nível de exposição para os livros, reconfigurando tudo com demandas próprias, acelerando processos e criando um ponto de contato de constante aprendizado com as pessoas.
Mês a mês, os agentes de boas-vindas e os visitantes desconfiados já me qualificaram a empreitada como ato de resistência, coragem, loucura. Para os mais comedidos, foi excentricidade mesmo. Alguns amigos comentam – como fazem, em tom de brincadeira, quando não entendem como um negócio funciona – que deve ser lavagem de dinheiro. Talvez isso tenha um tanto de projeção. De certa forma me satisfaço com as formas inusitadas que a livraria encontra para suprir as necessidades de ficção de cada um.
Às vezes me pergunto se tenho o perfil adequado para a função. Mesmo sendo a única pessoa atrás do balcão, é comum um cliente se dirigir a outro com questionamentos indiretos de atendimento, como algum comentário de leitura do tipo: “Esse não é aquele livro do Chico que dizem ser plágio do Orwell?”. E o outro cliente ainda pode muito bem achar que é uma tentativa de entabular conversa e responder que talvez ela esteja falando do Fazenda Modelo. E seguir assim até o fatídico: “Desculpa, mas eu não trabalho aqui”.
Ao fundo da loja testemunho tudo com um sorriso por trás da máscara, ao mesmo tempo que relembro quantas vezes eu mesmo não estive nessa posição, e penso que as respostas dos clientes costumam ser melhores e mais completas que as minhas.
Entre sem bater
Por vezes, a mesma dúvida também se volta para o próprio espaço da livraria. A Jacaré Livros está localizada numa galeria de brechós e cabelereiros. Acontece das pessoas se verem cercadas de livros e perguntarem: “Esses livros, que bacana, vocês compram ou vocês vendem?”, “É uma livraria ou é um sebo?”.
Num dia de chuva, um desavisado entrou perguntando por serviço de xerox. Expliquei que não era ali, mas em outra galeria. Nesse meio-tempo ele já tinha adentrado na loja. Olhou os livros ao redor e perguntou: “Isso é uma livraria?”. Passou algum tempo na sessão de biografias e voltou com um título. Entre sem bater, sobre o Aparício Torelly. Pensei que fosse comprá-lo. “Não”, respondeu ele, “esse fui eu quem escrevi”. Cumprimentei-o e tomei a única atitude possível, pedi que autografasse o exemplar. Contei a história no perfil da Jacaré no Instagram – acabei recebendo mais de dez pedidos de compra do livro. A livraria, no entanto, só tinha um único exemplar. No sebo, a gente vende um livro por vez.
Módica e selecionada
Com 15 m2 e um acervo de 5 mil livros, na minha loja tenho clientes que gostam de dizer que têm mais títulos em casa do que na Jacaré. Por uma questão de espaço e de giro, aqui é preciso escolher. Há quem chame isso de curadoria. “Títulos selecionados” é um jeito antigo de dizer, como “preços módicos”. Porém, a escassez maior é de atenção, que tem relação parecida com a leitura. É preciso foco, é preciso duração.
Todos os dias tem “novidades” publicadas nas redes sociais da livraria. Ali a gente procura demorar o olhar num detalhe, seja na orelha do livro, no sumário, na capa, numa dedicatória, num ex-líbris ou num trecho. Fico mais satisfeito comigo mesmo quando encontro tempo para compartilhar algo mais interessante do que o preço. Nas fotos, quase sempre estou lá fazendo companhia para o livro, segurando-o na mão. Gosto de pensar que estou estendendo esse livro para alguém. “Olha isso!” Às vezes acontece de o cliente que acabou de sair da loja sem reparar no título enviar mensagem pedindo para reservar. Há que buquinar.
Contudo, no comércio eletrônico de livros de segunda mão predominam os sites de marketplace – como se sabe, o exemplo mais conhecido é a Estante Virtual, com um formato de leilão de menor preço no qual as informações sobre os títulos se restringem às características físicas do exemplar. São descrições do tipo: “Pequeno corte na capa”, “mancha amarelada na folha de rosto”, “pontos de oxidação no corte do miolo”, “trechos sublinhados a lápis” etc. Mais parece um exame de corpo de delito. Na melhor das hipóteses, aparece um traço de distinção como: “Exemplar autografado pelo autor”, ou “Edição esgotada!!!” (com demasiadas exclamações). É um tanto contraintuitivo e mesmo notável que esse formato se converta em vendas. Nesse contexto, a sinopse ou o conteúdo é, de certo modo, dispensável. Trata-se de um ambiente para iniciados. No marketplace, todos já sabem o que estão procurando.
Já uma livraria de usados é território de improbabilidades que resgata e coloca em circulação títulos de bibliotecas particulares desses e de outros tempos, fora de uma agenda de consumo do momento, mas que, de alguma forma, mantêm seu apelo – um chamado que poucos objetos têm como o livro.
Encontros & pertencimento
Acontece muitas vezes de as pessoas não saberem bem o que estão procurando. Uma questão que poderia dificultar ainda mais essa busca é que até hoje não consegui colocar os títulos em ordem alfabética nas estantes. Os clientes, por sua vez, parecem não se importarem tanto. Há quem diga que é isso que mantém as pessoas tanto tempo numa sala tão pequena (a clientela é muito solidária). E, nesse garimpo, eventualmente ocorre algum encontro.
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Até aqui a nossa livraria encontra seus melhores momentos em situações as mais banais: quando cria uma abertura para que desconhecidos comecem a conversar sobre livros, quando uma cliente vem adiantar a leitura enquanto aguarda a sua vez na manicure em frente, quando amigos se encontram ao acaso ou (melhor ainda) marcam de se encontrar na loja, quando um cliente aparece só para recomendar um livro/disco/filme e inicia uma discussão coletiva na sala, quando testemunho o entusiasmo de um amigo apresentando um livro para outro ou reclamando do livro que não gostou (não são apenas os livros que são de segunda mão aqui, as resenhas também), quando alguém me surpreende, lendo uma dedicatória em voz alta, quando tenho ou encontro o exato livro que o cliente procura, quando mães ou pais trazem seus filhos para a livraria, quando eu segurei um bebê no colo para que a mãe pudesse olhar os livros por alguns minutos, quando uma criança trouxe seus livros para trocar na loja e na semana seguinte apareceu para comprar todos eles de volta, cada vez que um professor descobre a livraria. Toda vez que aparece um novo cliente, sempre que eles voltam.
Giuseppe Zani é jornalista com mestrado em Literatura Brasileira. Trabalhou por 15 anos com gestão de projetos culturais na Petrobras. É livreiro e criador da Jacaré Livros (jacarelivros.com.br).
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