Tem como você repetir, por favor, um segundo, pronto, agora desliguei, essa gente fica alugando, viu, isso que dá ser simpático com telefonista, e olha que era da Legião da Boa Vontade, os caras insistem tanto que te deixam sem saída, parece que fazem de propósito pra você se sentir culpado, uma hora não tem como, o sangue sobe, você fica de má vontade mesmo e desliga na cara deles. Mas diz aí. É pro censo? Não? Pesquisa de opinião? Entendi. Mas vai anotar tudo direitinho, né, me faça esse favor. Muita gente botando palavra na boca dos outros. Entendi, não, por mim tudo bem você anotar aí pontos principais e gravar pra não deixar nada de fora, só me diz quando sai o resultado. Certo. Posso, claro, eu assino no final, sem problema algum, vou ter vergonha da minha própria opinião? Nesse momento eu tô em intervalo, vim tomar uma chuveirada, fazer umas coisas em casa que você tá vendo, né, calor tá brabo, eu tenho um tempinho, sim. Deixa só eu guardar essa tesoura, quem é o maluco que atende a porta de tesoura na mão, olha, você me perdoe, prometo que eu não sou um desses doidos, eu tava aqui trabalhando num negócio, tem até a ver com o nosso assunto, se eu puder te mostrar, você quer ver? Só entrar, entra, entra. Não? Bom, tá bem. Vamos lá. Então, meu nome é Marcel Garcia. Marcel. Garcia. Sou motorista de aplicativo e capista de livros. Trinta e nove anos. Pois é, não, não tem problema, já tô acostumado com olhar meio torto quando eu me apresento. As pessoas não entendem que o meu trabalho como capista de livros, que eu venho exercendo bota aí dez anos, trata-se de uma missão. Como toda missão, não deve ser contaminada pela necessidade de sobrevivência, sacou? Um soldado não vai pra guerra pra viver, mas pra ganhar. Eu sempre soube que a minha atividade artística, que parece paralela mas não é, muito pelo contrário, você vai ver, seria mais livre e efetiva quanto menos eu dependesse dela. Pinguei de emprego em emprego, sou jornalista de formação, eu estudei, fiz comunicação, produção editorial, coloca aí, embora não, não tenha trabalhado com jornalismo, você que mexe com pesquisa sabe que esse meio, se é que ainda existe, se transformou num lixo tóxico enviesado e eu não quero me submeter a isso, então faz cinco anos que eu escolhi trabalhar com a uber. É uma escolha, sim, pode botar aí, escolhi esse trabalho porque eu posso parar, tomar uma cerveja, voltar pra pista, faço como eu quiser. Trabalhar de bermuda. Posso tirar um cochilo, ver um vídeo, tirar um tempo pra pesquisar artista de referência, enfim, tenho muita liberdade. Anteontem encontrei num sebo um livro com todas as pinturas de Menotti Del Picchia, livro muito bem diagramado, vinte reais, deixei no carro, de intervalo em intervalo já tô quase terminando. Ali na mesa da sala tem uma conta pra pagar até segunda-feira que vem, e eu sei que se eu rodar doze horas por dia até lá, eu ganho o que eu preciso pra quitar essa bodega. Que outro trabalho me dá essa certeza? Previsão de rentabilidade. Nesse ramo, se o cara quiser, ele faz uma grana. Pessoal tá falando aí de direitos disso e daquilo, pode anotar, eu não sei não, eu tô nessa porque eu quero, e minha esposa me apoia, essas ideias de fazer da gente empregado vai tornar tudo mais caro, vão mandar a gente usar uniforme do aplicativo e o nosso serviço vai, ó, sumir, você vai ver, acabou competitividade com a montanha de imposto que vão embutir no preço da corrida. Mas tem uma coisa. Que o aplicativo é safado, isso ele é. Eu falo mesmo. De cada corrida de vinte reais são oito que chegam pra mim, acredita? Os caras lá, os americanos, eles embolsam doze! Me diz se isso é justo. Malandro é maldoso. Alguém tem que falar com a uber pra dividir melhor essa bagaça com os motoristas. Alguém tem que negociar, eu sei lá, fazer qualquer coisa, porque sindicato a gente não tem. E agora eu já sei que esse governo que tá aí não vai fazer essa negociação pela gente. Até tinha esperança que eles ajudassem o trabalhador brasileiro, mas hoje em dia rodo dez horas pra ganhar um valor que eu já cheguei a juntar em sete. Sim, votei nele em 2018, pode botar aí. Agora tentamos eleger dois vereadores, os Dênis, é como os dois chamam, Dênis Chegou e Dênis Uber, não tiveram voto suficiente. Então nesse momento de segundo turno, com o país todo quebrado e ainda o desgosto do meu time brigando contra o rebaixamento, uma diretoria cheia de desentendidos sem amor à camisa, anota aí que eu tô frustrado mesmo. Não comigo, porque não tinha opção, é com eles lá em Brasília. Votei, apoiei, mandei notícia pra todo mundo que eu podia, mas não tem jeito. A corrupção é que nem paletó, quem tá em lugar de poder usa. O sonho do sujeito que hoje veste chinelo e camiseta é virar um auxiliar de deputado e daí você logo vai ver o cara todo metido em sujeira, mas arrumadinho de terno, sapatinho lustrado, gravatinha, todo pimpão na beca. Que é algo que nem faz sentido no Brasil, por causa desse calor. A gente importa muita coisa sem sentido, essa que é a verdade. E eu luto pra evitar. Faço minha parte nessa guerra. Tem muita gente ligada na necessidade dessa guerra, pra ser honesto, mas a maioria não compreende, sai fazendo as coisas de qualquer jeito, aí dá munição pros outros, eu não, eu estudei design, arte. Sei o que estou fazendo. Faço um meme legal. Ouvi muito os meus professores de jornalismo na faculdade, e eu sei que a gente tem que fazer o contrário do que eles falavam. Você pega uma lista de livros dessas aulas aí de faculdade. Talvez hoje isso tenha mudado, mas na minha época eles só davam estrangeiro pra gente ler. Desciam o pau em tudo que era jornal daqui, quando passavam filme, era de gente de casaco de veludo trocando ideia sobre a morte da bezerra em restaurante chique tomando xicrinha de café pela asa em pleno horário comercial, enquanto isso acabavam com o Meia Hora, que pra mim é o melhor jornal que tem, porque a gente sabe que o povo gosta de ver a primeira página pendurada na banca e só nisso já entende tudo, mas pros professores o Meia Hora era apelativo, era de mau gosto. Eles não entendem é nada, então eu compreendi, ainda mais com o YouTube, hoje com tanto curso disponível pra gente estudar esteja onde estiver, que essa gente faz parte de uma estratégia de padronizar o gosto nacional com critérios do exterior, com um tipo de pensamento global, uma cultura imposta, sabe, que não é a do povo daqui, com uma ideia de comportamento que vem de pseudointelectuais e que o brasileiro real não aceita muito bem. Precisa ver a minha esposa, o que tentam colocar de ideia errada na cabeça dela. Ainda bem que ela tem personalidade própria. E essas ideias chegam pelos best-sellers, pelos textos cabeçudos, cada um emporcalhando nossa cabeça de um jeito. Todo mundo sabe que a educação faliu, que o brasileiro deixou de pensar por si mesmo e hoje a garotada compra livro pela capa. Pra evitar que os brasileiros sejam invadidos por essas ideias e imagens deslocadas, eu passei a trabalhar fazendo capas feias. Uma tática de guerrilha pra afastar as pessoas desses livros. Evitar a contaminação ideológica. Se eu te levar de carro numa livraria por aí, você vai ver um livro com capa minha e você não vai querer comprar. Aí reside o meu sucesso. Aliás daqui a pouco preciso voltar pro trabalho. Maldito calor do cão. Pior que eles ficam mandando mensagem automática perguntando se já encerrei o expediente por hoje. Mas, então, o que eu quero é que nossos jovens leitores batam o olho na capa e percam a vontade de ler essas bobagens. O nosso contexto é de um país com um povo que precisa de muita educação pra parar de se sentir coitadinho – e de governantes que deixem o povo trabalhar e escolher livremente. A gente tem que conhecer a história dos melhores homens desse país, não ficar lendo enlatado dispensável, desagregador de quem nós somos. O povo precisa de união, não de divisão de raça, de classe, essas coisas que só geram dispersão, o povo precisa de uma mentalidade correta, batalhadora, sem tempo pra historinha molenga de vampiro contra princesa contra lobisomem ou de mutante contra humano que a gente sabe que é metáfora e sexo pervertido para adolescentes, a gente precisa de firmeza, seja lá se for temente a Deus ou que estude em colégio militar, precisa é foco pra vencer e, claro, tolerância zero com ladroagem, disso eu não abro mão, odeio gente corrupta. Que foi outra coisa que me decepcionou nesse governo. Então a minha formação é essa aí, anotou? Superior completo. Comunicação. Aí fui me inteirando cada vez mais dessa questão das ideias globalistas. Tentei evitar o quanto pude, depois de uns cursos de arte me esmerando na elaboração de projetos feios, eu tentei evitar, quando consegui que editoras de livros me chamassem, que nossos jovens lessem uma parte dessa porcariada. Tenho critérios. Livro bobinho, livro que deturpa a mente do nosso jovem pro mau caminho, livro que passa mensagem oculta prejudicial, mensagem ardilosa, livro de bobajada romântica, incentiva o sexo precoce, casalzinho de namorado de colegial em Massachusetts, livro que usa “realizei” quando podia usar “entendi”, “percebi”, “notei”, “compreendi”, livro adocicado pra deixar nossa garotada molenga – nisso tudo, taca-lhe capa feia. Fiz muitas capas pra editoras por aí. Outro dia um youtuber do canal livraria em casa apresentou uma lista de capas que ficaram mais feias do que as capas gringas originais. Na lista de dez capas, adivinha, tinha quatro minhas! O cara falou até da pervertida da Christie Sims – nesse caso já eram muito feias no original, só precisei trocar as mulheres de biquíni por outras com mais padrão assim típico de brasileira que eu deixei totalmente desproporcionais, mas mantive os dinossauros – e, se você for ver a lista lá no canal do rapaz, são livros que até venderam bem, acontece que se não fossem as minhas capas, teriam vendido ainda melhor. Sim, eu tenho planos pro futuro, é claro, pode anotar. Tô nesse ramo dos best-sellers há algum tempo, agora o que eu quero é entrar no mercado de capas de livros acadêmicos e de política, tá anotando? Não nego que eu gosto de trabalhar com a cabeça dos jovens que só buscam entretenimento, mas tô vendo lá na frente. Uma hora ou outra, um pouco mais velhos, eles recorrem à artilharia mais pesada. É por livros acadêmicos e de política que esse vírus se espalha. Você acha que é pelo YouTube? Também. Esses influenciadores chegam em muita gente, mas qualquer coisa que eles falam, quando eles querem provar um ponto, parecer sérios, botar uma banca de autoridade, daí eles mostram um livro mais robusto, de filosofia, de pesquisa, de supostos pensadores da Europa, dos Estados Unidos, dizendo que naquele livro tem a base de tudo que eles tão falando, e aí parece que a pessoa é estudiosa, mas eles só mostram três ou quatro frases e a capa, então eu quero atacar na raiz, entende? Minha meta pro ano que vem é fazer seis capas feias de livros de filosofia econômica ou análise política, porque vai sair muita coisa nesse campo, e vai sair muita mentirada, eu preciso conseguir os livros certos, quanto menos gente ler, melhor. Então não tenho como dizer pra você pra pesquisar aí que minha profissão é uber e só uber, entende, porque o uber é apenas pra me manter mesmo, mas eu sou capista, essa é minha missão. E pode botar aí, estou puto com esse governo que falou tanto de corrupção e só pratica mais e mais corrupção. Pode botar, como eu avalio: de bom pra regular. Pra mim foi bom porque com a economia em baixa saiu muito livro ruim, porque precisava vender de qualquer jeito, então eu tive um bocado de trabalho nesse sentido durante esse ano, muita capa feia pra fazer. Mas, se você for pensar no geral, assim, para o país, quanto mais trabalho pra mim, pior. Nesse sentido que te falei, de evitar a leitura de bobajada. Droga de aplicativo, fica mandando mensagem. Peraí, vou desligar. Eles ficam atrás da gente, incentivando a rodar, mostrando estatísticas, aí preciso mostrar que eu sou que decido. Pronto, desligado. Sabe, eu acreditava no presidente. Eu acreditava no Guedes, no Moro – esse é o pior de todos. O cara sai do governo acusando geral e agora tá de volta do lado dos caras? E ainda me vem falar de combate à corrupção? Totalmente desmoralizado. Ninguém mais acredita. É por isso que hoje eu tô perdido. Não acredito em ninguém. Eles acabaram com a minha esperança. Então anota aí que é o quê? Ah, sim, claro, o banheiro é logo ali, primeira à direita no corredor, fica à vontade, já deu pra notar que você é uma pessoa de bem. Nem te ofereci um copo d’água, vem cá, um calor desses, que educação a minha, pega uma água pra você, tá bom? É legal que você vai ver duas das minhas capas, eu botei minhas preferidas emolduradas na parede do banheiro, mas se você quiser, antes vê aqui, aí você já vê o que eu estava fazendo, já que você já entrou, olha aí na mesa, aí você sente logo o clima da família. A gente aqui em casa era tão confiante que o Brasil ia mudar, a gente apoiava tanto a Lava Jato que eu tinha um livro do Moro, a minha esposa tinha outro livro do Moro e a minha sogra um terceiro, já viu isso? Foi pra dar moral mesmo que compramos três. Tava barato na amazon. E nós fomos pra rua segurando os livros no peito, levantando a cara dele, expressando o nosso desejo de mudança, sabe, nas manifestações, e agora a gente tá assim, ó, primeiro ele traiu o presidente, depois ele acusou o presidente, agora ele juntou com o presidente que ele acusou, como é que pode? Ele se queimou com todos nós, brasileiros, que acreditamos nele. É tanta decepção, eu não aguentava mais olhar pra essas capas cheias de hipocrisia.
Essa última, pra você ver, a minha sogra, ela tá tão machucada, tadinha, mais até do que eu, que ela virou pro outro lado, ela vai apertar no barba, não tá nem aí, não é que ela seja má pessoa, ela amava o nosso presidente, vivia elogiando que era um homem duro na queda, impunha respeito, que parecia o finado pai dela, que Deus o tenha, morreu na pandemia, deixou uma casa aqui do lado, que a gente teve que vender pra se manter na pandemia, e a minha sogra ela chegou a fazer campanha na vizinhança, ela se esforçou, sabe, aí acabou que se sentiu muito traída, faz uns dias saiu falando pra todo mundo que até o Papa não gosta mais do capitão, então ela virou pro outro mesmo, canta até a musiquinha quando toca na tevê, eu agora fico só observando, porque cada vez mais eu tento não brigar, apesar de tudo isso, ela é muito boa comigo, tem sempre uma palavra positiva, continuou me tratando igualzinho quando eu disse que ia usar nosso carro pra virar uber, não mudou nada, aí quando você bateu na porta eu estava fazendo essa arte no livro dela, eu quero mostrar que apesar das diferenças a nossa casa merece paz, e sabe de uma coisa, vou te confessar que colar essas fitas aí no livro, isso me deu uma sensação boa, sabe, tipo acabar com a sonsice desse homem, um acerto de contas, que nisso desse homem ser sonso a minha sogra e eu estamos de acordo, o cara nos decepcionou legal e teve um dia que ela falou, a gente discutindo aqui no almoço comendo uma omelete de cebola, que o Moro é contra o PT mas que foi o presidente que fez o PT virar opção de novo, e se a gente for parar pra pensar, pensa comigo, o Moro prendeu um, depois denunciou outro, então no fim das contas ele fez o quê? Ele deixou a gente sem opção. Outro dia ela disse que se tem algum fascista é ele. Até me espantei. É, sogrinha tá parecendo jovem. Rodando por aí eu vejo cada vez mais gente de camisa vermelha, eu pego um, pego outro, volta e meia eles soltam essa de que o presidente é fascista, eu não encrenco porque não sou maluco, a maioria me dá cinco estrelas, eles mantêm minha média alta e eu preciso dessa grana. A sogrinha vive de aposentadoria e carteado, ela ficou muito sentida de não poder sair pra encontrar as amigas do bairro durante a pandemia, medo de ir à igreja até, ela sofreu muito, as amigas com medo de morrer sem vacina, e duas até bateram as botas mesmo, que Deus as tenha, além do pai dela, que já era bem velhinho, aí ela tá achando que com o barba vai ser menos pior, porque pelo menos não vai fazer ela se sentir tão burra e traída como fez o governo atual. Ela diz que pra mim vai ser bom porque vou ter direitos porque outro dia eu travei a coluna e tive de ficar três dias sem rodar e nisso minha esposa foi a única botando dinheiro pra dentro de casa, e isso realmente é, assim, é muito chato. Mas eu não sei, eu discordo dela em vários pontos, sei lá, sabe, eu tô é triste mesmo. Decepcionado. Queria o meu Brasil melhor. Desculpe ocupar seu tempo, já tô te alugando de novo, vai lá no banheiro. Você ainda vai cobrir essa rua inteira hoje, é? Só você? Caramba, pernas pra que te quero. Falta de verba, sei. Equipe reduzida, eu entendo. Mas assim você vai ficar aí até a madrugada. Daqui a duas ruas, saindo daqui e indo pra esquerda, se precisar comer, tem na esquina o Delícias Caseiras, é bom e barato. Refresco e salgado de boa qualidade. Tem que bater a meta, né? Ao menos dão vale-refeição, entendi. Mas você já gastou no almoço. Sei. Tá fácil pra ninguém. Tá certo. Isso é legal, é bom ter um sonho, leva a gente pra frente. A sua família? Não, que isso, ameaça de despejo é muito grave. Seus pais trabalham? Sei. Não, tudo bem. Também tenho minhas dívidas. Sim, eu sei que trabalho de pesquisa é provisório, não vão ficar pesquisando a vida toda. Então quer dizer que seu sonho é mexer com programação? Tem muito mercado, parece. Fora do Brasil? Interessante. E levar seus pais, né. Ah, você vai conseguir. Tenho certeza. Eu desejo o melhor pra você. Se você quiser mesmo, sabe. Vai conseguir. Tenho certeza. Não te ofereço um lanche porque, pode abrir pra você ver, a geladeira tá vazia. Então, mas por enquanto, voltando aqui, vamos lá, você pode botar aí, meu voto é nulo. Marcel Garcia, capista e motorista, trinta e nove anos, nulo. Anotou certinho, né? Olha só, olha ela aí. Tá ouvindo a musiquinha? É a voz da minha sogra, ela fica lá dentro assistindo aquela tevê velha, esperando a propaganda eleitoral, quer porque quer ver o homem, diz que ele virou um idoso fofo depois da prisão, que pagou seus pecados, e o presidente mesmo livre com tudo à disposição embagulhou e virou frouxo, pior que ela fala assim mesmo, disse que a nova esposa do barba tem cara de quem tá feliz com o homem que tem, cara de quem acorda com o marido dando beijo molhado e café na cama, enquanto a outra parece que tá esgotada subindo a escadaria da Penha cumprindo penitência, olha, se você quiser eu posso chamar a minha sogra, espera só a propaganda acabar, se não ela fica uma arara, enquanto isso, perdão, claro, vai lá no banheiro, você deve estar se segurando faz tempo, tô vendo, ah, se você visse a cara dela de dois anos atrás e como tá agora, a diferença de lá pra cá, é impressionante, parece que remoçou, tem ruga até que desapareceu, agora fica só no meu ouvido pedindo neto, e eu posso com isso, o país desse jeito? Ela ia gostar mesmo de participar da pesquisa, vou chamar a velha, aí você fica mais cinco minutos, escuta ela, explica pra ela o que é programação, talvez eu ainda tenha uns salgados, sabe, um restinho de refrigerante, aí você já escuta mais uma pessoa, já pega outra opinião.
Leonardo Villa-Forte publicou Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI (Relicário/Ed. PUC-Rio), menção honrosa no Prêmio Casa de Las Américas 2020. Também é autor de O princípio de ver histórias em todo lugar (romance); O explicador (contos), Agenda e Hotel (contos avulsos), entre outros trabalhos no campo da literatura expandida.
CONHECIMENTOS & AFETOS por Andrea Ledo e Alencar Fráguas Perdigão, da Quixote Livraria Uma das acepções da palavra “relicário” é: lugar próprio para guardar relíquias. A nossa participação, em nome da Quixote Livraria, neste blog não viria em melhor momento, pois a comemoração do aniversário de 8 anos da Relicário Edições nos remeteu imediatamente a …
NOSSOS 8 ANOS DE LIVROS por Maíra Nassif [Este texto foi escrito pela editora Maíra Nassif, no dia 9 de outubro de 2021, aniversário de 8 anos da Relicário] Devo dizer que fiquei bem contente pelo aniversário de 8 anos da Relicário cair num sábado. HOJE! Isso porque posso estar aqui, sentada …
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COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
UM PAÍS DESSE JEITO
por Leonardo Villa-Forte
Tem como você repetir, por favor, um segundo, pronto, agora desliguei, essa gente fica alugando, viu, isso que dá ser simpático com telefonista, e olha que era da Legião da Boa Vontade, os caras insistem tanto que te deixam sem saída, parece que fazem de propósito pra você se sentir culpado, uma hora não tem como, o sangue sobe, você fica de má vontade mesmo e desliga na cara deles. Mas diz aí. É pro censo? Não? Pesquisa de opinião? Entendi. Mas vai anotar tudo direitinho, né, me faça esse favor. Muita gente botando palavra na boca dos outros. Entendi, não, por mim tudo bem você anotar aí pontos principais e gravar pra não deixar nada de fora, só me diz quando sai o resultado. Certo. Posso, claro, eu assino no final, sem problema algum, vou ter vergonha da minha própria opinião? Nesse momento eu tô em intervalo, vim tomar uma chuveirada, fazer umas coisas em casa que você tá vendo, né, calor tá brabo, eu tenho um tempinho, sim. Deixa só eu guardar essa tesoura, quem é o maluco que atende a porta de tesoura na mão, olha, você me perdoe, prometo que eu não sou um desses doidos, eu tava aqui trabalhando num negócio, tem até a ver com o nosso assunto, se eu puder te mostrar, você quer ver? Só entrar, entra, entra. Não? Bom, tá bem. Vamos lá. Então, meu nome é Marcel Garcia. Marcel. Garcia. Sou motorista de aplicativo e capista de livros. Trinta e nove anos. Pois é, não, não tem problema, já tô acostumado com olhar meio torto quando eu me apresento. As pessoas não entendem que o meu trabalho como capista de livros, que eu venho exercendo bota aí dez anos, trata-se de uma missão. Como toda missão, não deve ser contaminada pela necessidade de sobrevivência, sacou? Um soldado não vai pra guerra pra viver, mas pra ganhar. Eu sempre soube que a minha atividade artística, que parece paralela mas não é, muito pelo contrário, você vai ver, seria mais livre e efetiva quanto menos eu dependesse dela. Pinguei de emprego em emprego, sou jornalista de formação, eu estudei, fiz comunicação, produção editorial, coloca aí, embora não, não tenha trabalhado com jornalismo, você que mexe com pesquisa sabe que esse meio, se é que ainda existe, se transformou num lixo tóxico enviesado e eu não quero me submeter a isso, então faz cinco anos que eu escolhi trabalhar com a uber. É uma escolha, sim, pode botar aí, escolhi esse trabalho porque eu posso parar, tomar uma cerveja, voltar pra pista, faço como eu quiser. Trabalhar de bermuda. Posso tirar um cochilo, ver um vídeo, tirar um tempo pra pesquisar artista de referência, enfim, tenho muita liberdade. Anteontem encontrei num sebo um livro com todas as pinturas de Menotti Del Picchia, livro muito bem diagramado, vinte reais, deixei no carro, de intervalo em intervalo já tô quase terminando. Ali na mesa da sala tem uma conta pra pagar até segunda-feira que vem, e eu sei que se eu rodar doze horas por dia até lá, eu ganho o que eu preciso pra quitar essa bodega. Que outro trabalho me dá essa certeza? Previsão de rentabilidade. Nesse ramo, se o cara quiser, ele faz uma grana. Pessoal tá falando aí de direitos disso e daquilo, pode anotar, eu não sei não, eu tô nessa porque eu quero, e minha esposa me apoia, essas ideias de fazer da gente empregado vai tornar tudo mais caro, vão mandar a gente usar uniforme do aplicativo e o nosso serviço vai, ó, sumir, você vai ver, acabou competitividade com a montanha de imposto que vão embutir no preço da corrida. Mas tem uma coisa. Que o aplicativo é safado, isso ele é. Eu falo mesmo. De cada corrida de vinte reais são oito que chegam pra mim, acredita? Os caras lá, os americanos, eles embolsam doze! Me diz se isso é justo. Malandro é maldoso. Alguém tem que falar com a uber pra dividir melhor essa bagaça com os motoristas. Alguém tem que negociar, eu sei lá, fazer qualquer coisa, porque sindicato a gente não tem. E agora eu já sei que esse governo que tá aí não vai fazer essa negociação pela gente. Até tinha esperança que eles ajudassem o trabalhador brasileiro, mas hoje em dia rodo dez horas pra ganhar um valor que eu já cheguei a juntar em sete. Sim, votei nele em 2018, pode botar aí. Agora tentamos eleger dois vereadores, os Dênis, é como os dois chamam, Dênis Chegou e Dênis Uber, não tiveram voto suficiente. Então nesse momento de segundo turno, com o país todo quebrado e ainda o desgosto do meu time brigando contra o rebaixamento, uma diretoria cheia de desentendidos sem amor à camisa, anota aí que eu tô frustrado mesmo. Não comigo, porque não tinha opção, é com eles lá em Brasília. Votei, apoiei, mandei notícia pra todo mundo que eu podia, mas não tem jeito. A corrupção é que nem paletó, quem tá em lugar de poder usa. O sonho do sujeito que hoje veste chinelo e camiseta é virar um auxiliar de deputado e daí você logo vai ver o cara todo metido em sujeira, mas arrumadinho de terno, sapatinho lustrado, gravatinha, todo pimpão na beca. Que é algo que nem faz sentido no Brasil, por causa desse calor. A gente importa muita coisa sem sentido, essa que é a verdade. E eu luto pra evitar. Faço minha parte nessa guerra. Tem muita gente ligada na necessidade dessa guerra, pra ser honesto, mas a maioria não compreende, sai fazendo as coisas de qualquer jeito, aí dá munição pros outros, eu não, eu estudei design, arte. Sei o que estou fazendo. Faço um meme legal. Ouvi muito os meus professores de jornalismo na faculdade, e eu sei que a gente tem que fazer o contrário do que eles falavam. Você pega uma lista de livros dessas aulas aí de faculdade. Talvez hoje isso tenha mudado, mas na minha época eles só davam estrangeiro pra gente ler. Desciam o pau em tudo que era jornal daqui, quando passavam filme, era de gente de casaco de veludo trocando ideia sobre a morte da bezerra em restaurante chique tomando xicrinha de café pela asa em pleno horário comercial, enquanto isso acabavam com o Meia Hora, que pra mim é o melhor jornal que tem, porque a gente sabe que o povo gosta de ver a primeira página pendurada na banca e só nisso já entende tudo, mas pros professores o Meia Hora era apelativo, era de mau gosto. Eles não entendem é nada, então eu compreendi, ainda mais com o YouTube, hoje com tanto curso disponível pra gente estudar esteja onde estiver, que essa gente faz parte de uma estratégia de padronizar o gosto nacional com critérios do exterior, com um tipo de pensamento global, uma cultura imposta, sabe, que não é a do povo daqui, com uma ideia de comportamento que vem de pseudointelectuais e que o brasileiro real não aceita muito bem. Precisa ver a minha esposa, o que tentam colocar de ideia errada na cabeça dela. Ainda bem que ela tem personalidade própria. E essas ideias chegam pelos best-sellers, pelos textos cabeçudos, cada um emporcalhando nossa cabeça de um jeito. Todo mundo sabe que a educação faliu, que o brasileiro deixou de pensar por si mesmo e hoje a garotada compra livro pela capa. Pra evitar que os brasileiros sejam invadidos por essas ideias e imagens deslocadas, eu passei a trabalhar fazendo capas feias. Uma tática de guerrilha pra afastar as pessoas desses livros. Evitar a contaminação ideológica. Se eu te levar de carro numa livraria por aí, você vai ver um livro com capa minha e você não vai querer comprar. Aí reside o meu sucesso. Aliás daqui a pouco preciso voltar pro trabalho. Maldito calor do cão. Pior que eles ficam mandando mensagem automática perguntando se já encerrei o expediente por hoje. Mas, então, o que eu quero é que nossos jovens leitores batam o olho na capa e percam a vontade de ler essas bobagens. O nosso contexto é de um país com um povo que precisa de muita educação pra parar de se sentir coitadinho – e de governantes que deixem o povo trabalhar e escolher livremente. A gente tem que conhecer a história dos melhores homens desse país, não ficar lendo enlatado dispensável, desagregador de quem nós somos. O povo precisa de união, não de divisão de raça, de classe, essas coisas que só geram dispersão, o povo precisa de uma mentalidade correta, batalhadora, sem tempo pra historinha molenga de vampiro contra princesa contra lobisomem ou de mutante contra humano que a gente sabe que é metáfora e sexo pervertido para adolescentes, a gente precisa de firmeza, seja lá se for temente a Deus ou que estude em colégio militar, precisa é foco pra vencer e, claro, tolerância zero com ladroagem, disso eu não abro mão, odeio gente corrupta. Que foi outra coisa que me decepcionou nesse governo. Então a minha formação é essa aí, anotou? Superior completo. Comunicação. Aí fui me inteirando cada vez mais dessa questão das ideias globalistas. Tentei evitar o quanto pude, depois de uns cursos de arte me esmerando na elaboração de projetos feios, eu tentei evitar, quando consegui que editoras de livros me chamassem, que nossos jovens lessem uma parte dessa porcariada. Tenho critérios. Livro bobinho, livro que deturpa a mente do nosso jovem pro mau caminho, livro que passa mensagem oculta prejudicial, mensagem ardilosa, livro de bobajada romântica, incentiva o sexo precoce, casalzinho de namorado de colegial em Massachusetts, livro que usa “realizei” quando podia usar “entendi”, “percebi”, “notei”, “compreendi”, livro adocicado pra deixar nossa garotada molenga – nisso tudo, taca-lhe capa feia. Fiz muitas capas pra editoras por aí. Outro dia um youtuber do canal livraria em casa apresentou uma lista de capas que ficaram mais feias do que as capas gringas originais. Na lista de dez capas, adivinha, tinha quatro minhas! O cara falou até da pervertida da Christie Sims – nesse caso já eram muito feias no original, só precisei trocar as mulheres de biquíni por outras com mais padrão assim típico de brasileira que eu deixei totalmente desproporcionais, mas mantive os dinossauros – e, se você for ver a lista lá no canal do rapaz, são livros que até venderam bem, acontece que se não fossem as minhas capas, teriam vendido ainda melhor. Sim, eu tenho planos pro futuro, é claro, pode anotar. Tô nesse ramo dos best-sellers há algum tempo, agora o que eu quero é entrar no mercado de capas de livros acadêmicos e de política, tá anotando? Não nego que eu gosto de trabalhar com a cabeça dos jovens que só buscam entretenimento, mas tô vendo lá na frente. Uma hora ou outra, um pouco mais velhos, eles recorrem à artilharia mais pesada. É por livros acadêmicos e de política que esse vírus se espalha. Você acha que é pelo YouTube? Também. Esses influenciadores chegam em muita gente, mas qualquer coisa que eles falam, quando eles querem provar um ponto, parecer sérios, botar uma banca de autoridade, daí eles mostram um livro mais robusto, de filosofia, de pesquisa, de supostos pensadores da Europa, dos Estados Unidos, dizendo que naquele livro tem a base de tudo que eles tão falando, e aí parece que a pessoa é estudiosa, mas eles só mostram três ou quatro frases e a capa, então eu quero atacar na raiz, entende? Minha meta pro ano que vem é fazer seis capas feias de livros de filosofia econômica ou análise política, porque vai sair muita coisa nesse campo, e vai sair muita mentirada, eu preciso conseguir os livros certos, quanto menos gente ler, melhor. Então não tenho como dizer pra você pra pesquisar aí que minha profissão é uber e só uber, entende, porque o uber é apenas pra me manter mesmo, mas eu sou capista, essa é minha missão. E pode botar aí, estou puto com esse governo que falou tanto de corrupção e só pratica mais e mais corrupção. Pode botar, como eu avalio: de bom pra regular. Pra mim foi bom porque com a economia em baixa saiu muito livro ruim, porque precisava vender de qualquer jeito, então eu tive um bocado de trabalho nesse sentido durante esse ano, muita capa feia pra fazer. Mas, se você for pensar no geral, assim, para o país, quanto mais trabalho pra mim, pior. Nesse sentido que te falei, de evitar a leitura de bobajada. Droga de aplicativo, fica mandando mensagem. Peraí, vou desligar. Eles ficam atrás da gente, incentivando a rodar, mostrando estatísticas, aí preciso mostrar que eu sou que decido. Pronto, desligado. Sabe, eu acreditava no presidente. Eu acreditava no Guedes, no Moro – esse é o pior de todos. O cara sai do governo acusando geral e agora tá de volta do lado dos caras? E ainda me vem falar de combate à corrupção? Totalmente desmoralizado. Ninguém mais acredita. É por isso que hoje eu tô perdido. Não acredito em ninguém. Eles acabaram com a minha esperança. Então anota aí que é o quê? Ah, sim, claro, o banheiro é logo ali, primeira à direita no corredor, fica à vontade, já deu pra notar que você é uma pessoa de bem. Nem te ofereci um copo d’água, vem cá, um calor desses, que educação a minha, pega uma água pra você, tá bom? É legal que você vai ver duas das minhas capas, eu botei minhas preferidas emolduradas na parede do banheiro, mas se você quiser, antes vê aqui, aí você já vê o que eu estava fazendo, já que você já entrou, olha aí na mesa, aí você sente logo o clima da família. A gente aqui em casa era tão confiante que o Brasil ia mudar, a gente apoiava tanto a Lava Jato que eu tinha um livro do Moro, a minha esposa tinha outro livro do Moro e a minha sogra um terceiro, já viu isso? Foi pra dar moral mesmo que compramos três. Tava barato na amazon. E nós fomos pra rua segurando os livros no peito, levantando a cara dele, expressando o nosso desejo de mudança, sabe, nas manifestações, e agora a gente tá assim, ó, primeiro ele traiu o presidente, depois ele acusou o presidente, agora ele juntou com o presidente que ele acusou, como é que pode? Ele se queimou com todos nós, brasileiros, que acreditamos nele. É tanta decepção, eu não aguentava mais olhar pra essas capas cheias de hipocrisia.
Essa última, pra você ver, a minha sogra, ela tá tão machucada, tadinha, mais até do que eu, que ela virou pro outro lado, ela vai apertar no barba, não tá nem aí, não é que ela seja má pessoa, ela amava o nosso presidente, vivia elogiando que era um homem duro na queda, impunha respeito, que parecia o finado pai dela, que Deus o tenha, morreu na pandemia, deixou uma casa aqui do lado, que a gente teve que vender pra se manter na pandemia, e a minha sogra ela chegou a fazer campanha na vizinhança, ela se esforçou, sabe, aí acabou que se sentiu muito traída, faz uns dias saiu falando pra todo mundo que até o Papa não gosta mais do capitão, então ela virou pro outro mesmo, canta até a musiquinha quando toca na tevê, eu agora fico só observando, porque cada vez mais eu tento não brigar, apesar de tudo isso, ela é muito boa comigo, tem sempre uma palavra positiva, continuou me tratando igualzinho quando eu disse que ia usar nosso carro pra virar uber, não mudou nada, aí quando você bateu na porta eu estava fazendo essa arte no livro dela, eu quero mostrar que apesar das diferenças a nossa casa merece paz, e sabe de uma coisa, vou te confessar que colar essas fitas aí no livro, isso me deu uma sensação boa, sabe, tipo acabar com a sonsice desse homem, um acerto de contas, que nisso desse homem ser sonso a minha sogra e eu estamos de acordo, o cara nos decepcionou legal e teve um dia que ela falou, a gente discutindo aqui no almoço comendo uma omelete de cebola, que o Moro é contra o PT mas que foi o presidente que fez o PT virar opção de novo, e se a gente for parar pra pensar, pensa comigo, o Moro prendeu um, depois denunciou outro, então no fim das contas ele fez o quê? Ele deixou a gente sem opção. Outro dia ela disse que se tem algum fascista é ele. Até me espantei. É, sogrinha tá parecendo jovem. Rodando por aí eu vejo cada vez mais gente de camisa vermelha, eu pego um, pego outro, volta e meia eles soltam essa de que o presidente é fascista, eu não encrenco porque não sou maluco, a maioria me dá cinco estrelas, eles mantêm minha média alta e eu preciso dessa grana. A sogrinha vive de aposentadoria e carteado, ela ficou muito sentida de não poder sair pra encontrar as amigas do bairro durante a pandemia, medo de ir à igreja até, ela sofreu muito, as amigas com medo de morrer sem vacina, e duas até bateram as botas mesmo, que Deus as tenha, além do pai dela, que já era bem velhinho, aí ela tá achando que com o barba vai ser menos pior, porque pelo menos não vai fazer ela se sentir tão burra e traída como fez o governo atual. Ela diz que pra mim vai ser bom porque vou ter direitos porque outro dia eu travei a coluna e tive de ficar três dias sem rodar e nisso minha esposa foi a única botando dinheiro pra dentro de casa, e isso realmente é, assim, é muito chato. Mas eu não sei, eu discordo dela em vários pontos, sei lá, sabe, eu tô é triste mesmo. Decepcionado. Queria o meu Brasil melhor. Desculpe ocupar seu tempo, já tô te alugando de novo, vai lá no banheiro. Você ainda vai cobrir essa rua inteira hoje, é? Só você? Caramba, pernas pra que te quero. Falta de verba, sei. Equipe reduzida, eu entendo. Mas assim você vai ficar aí até a madrugada. Daqui a duas ruas, saindo daqui e indo pra esquerda, se precisar comer, tem na esquina o Delícias Caseiras, é bom e barato. Refresco e salgado de boa qualidade. Tem que bater a meta, né? Ao menos dão vale-refeição, entendi. Mas você já gastou no almoço. Sei. Tá fácil pra ninguém. Tá certo. Isso é legal, é bom ter um sonho, leva a gente pra frente. A sua família? Não, que isso, ameaça de despejo é muito grave. Seus pais trabalham? Sei. Não, tudo bem. Também tenho minhas dívidas. Sim, eu sei que trabalho de pesquisa é provisório, não vão ficar pesquisando a vida toda. Então quer dizer que seu sonho é mexer com programação? Tem muito mercado, parece. Fora do Brasil? Interessante. E levar seus pais, né. Ah, você vai conseguir. Tenho certeza. Eu desejo o melhor pra você. Se você quiser mesmo, sabe. Vai conseguir. Tenho certeza. Não te ofereço um lanche porque, pode abrir pra você ver, a geladeira tá vazia. Então, mas por enquanto, voltando aqui, vamos lá, você pode botar aí, meu voto é nulo. Marcel Garcia, capista e motorista, trinta e nove anos, nulo. Anotou certinho, né? Olha só, olha ela aí. Tá ouvindo a musiquinha? É a voz da minha sogra, ela fica lá dentro assistindo aquela tevê velha, esperando a propaganda eleitoral, quer porque quer ver o homem, diz que ele virou um idoso fofo depois da prisão, que pagou seus pecados, e o presidente mesmo livre com tudo à disposição embagulhou e virou frouxo, pior que ela fala assim mesmo, disse que a nova esposa do barba tem cara de quem tá feliz com o homem que tem, cara de quem acorda com o marido dando beijo molhado e café na cama, enquanto a outra parece que tá esgotada subindo a escadaria da Penha cumprindo penitência, olha, se você quiser eu posso chamar a minha sogra, espera só a propaganda acabar, se não ela fica uma arara, enquanto isso, perdão, claro, vai lá no banheiro, você deve estar se segurando faz tempo, tô vendo, ah, se você visse a cara dela de dois anos atrás e como tá agora, a diferença de lá pra cá, é impressionante, parece que remoçou, tem ruga até que desapareceu, agora fica só no meu ouvido pedindo neto, e eu posso com isso, o país desse jeito? Ela ia gostar mesmo de participar da pesquisa, vou chamar a velha, aí você fica mais cinco minutos, escuta ela, explica pra ela o que é programação, talvez eu ainda tenha uns salgados, sabe, um restinho de refrigerante, aí você já escuta mais uma pessoa, já pega outra opinião.
Leonardo Villa-Forte publicou Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI (Relicário/Ed. PUC-Rio), menção honrosa no Prêmio Casa de Las Américas 2020. Também é autor de O princípio de ver histórias em todo lugar (romance); O explicador (contos), Agenda e Hotel (contos avulsos), entre outros trabalhos no campo da literatura expandida.
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