Parece que em outras vidas fui uma fofoqueira: expus vidas alheias, usei coisas que sabia dos outros a meu favor, pelo menos foi o que me garantiu uma astróloga que consultei recentemente. Isso me fez pensar nas fofoqueiras todas da minha adolescência e então desconfio daquilo que estou começando a enunciar: a escrita e a leitura como um caso sofisticado de fofoca. Não é tão vulgar nem tão perigosa, também talvez saiba negociar melhor com a moralidade, mas o que é a vida literária hoje senão uma versão fofoqueira do que lemos e ouvimos dizer dos autores que admiramos ou desprezamos? E lemos para fazer outra coisa senão contar aos outros o que descobrimos?
“Sabe da última?”
Nesse comentário fofoqueiro, nem mesmo os mortos estão de fora: “Sabe o que disse uma vez Josefina Ludmer?” “Parece que o Javier Marías morreu de Covid.” “Picasso é excelente artista, claro, não se discute, mas o que ele disse pra aquela garota de menos de 20 anos…” E assim por diante.
Que outra coisa eu faço senão fofocar ao pretender que sou uma gata à procura do meu rato sentada na praça com o ouvido atento a todas as conversas que acontecem ao redor e com os olhos atentos a tudo o que se move? [Esse negócio do gato e do rato é de um conselho da Ursula Le Guin, que anotei do livro Contar es escuchar, uma coletânea ótima de ensaios pessoais e sobre a escrita. Ela fala daquele momento — que pode durar anos — em que a gente está entre um livro e outro e ainda não sabe sobre o que escrever: “O mais importante que posso dizer sobre esse período preliminar: não se apresse. Sua mente é como um gato que sai para caçar; nem sequer sabe com segurança o que está caçando. Escute. Seja paciente como o gato. Permaneça muito, muito atento, alerta, mas sempre paciente. Avance lentamente. Não obrigue a história a cobrar forma. Deixe que se mostre. Deixe que tome pulso. Não pare de escutar. Tome notas ou faça qualquer outra coisa se você tem medo de esquecer algo, mas não corra ao computador. Deixe que a história se acerque de você. Quando estiver pronta pra começar, você saberá.”]
Estou na Plaça Masadas, em La Sagreira, Barcelona. Pretendendo ser uma gata olhando por todos os lados para ver se um rato aparece, mas com calma, como sugere Le Guin. Na Catalunha estou há quarenta dias — na praça, menos de uma hora — e só/tudo o que encontrei foram uns ratos magros que fugiram. Mas, qual a diferença da vizinha do meu passado, que ficava na janela vendo tudo o que acontecia ao redor pra passar adiante na roda de chimarrão e a observadora da praça? Talvez a intenção: não necessariamente fazer dano às meninas púberes contando por aí os mínimos sinais de sedução próprios da idade e combatidos com a lei da Igreja e da moral. A intenção pode ser menos perversa.
Alguma coisa acontece
Uma mulher chega na mesa ao lado, faz um pedido de alguma coisa catalã e uma água com gás. Ela calmamente abre um livro, começa a lê-lo. Veste um cardigã creme, uma saia quadriculada, meias violetas e mocassim da mesma cor do cardigã. [Não é essa uma boa palavra? Parece um carro.] Seus olhos saltam do livro, ela olha para frente e esboça um sorriso. Estou de costas para o que ela vê, mas ela vai ficando mais feliz e, de repente, entra na cena um homem, ele se aproxima e a beija. Então ela fecha o livro e o coloca sobre a bolsa na cadeira ao lado. É Ali Smith. Eles conversam animadamente enquanto comem azeitonas: a tal “alguma coisa catalã” que ela pediu ao chegar e que agora já está sobre a mesa. Pedem um vermute. Basta imaginar que são amantes, e não noivos, e a fofoca se torna complexa. Pode até virar um romance.
Fofoquei a minha cena. Pronto. Enquanto isso, como meu torrezno de Soria, a nova tapa da El Empanat, ainda sem saber a fortuna que pagarei por ela – estava farejando um rato, nem me lembrei de olhar preços. Os belisquetes custam mais ou menos uns cinco euros nesta região, que não é a Barcelona mais turística. Mas vim pra comer o torresmo, pedi também um vermute e me sentei com os olhos voltados, dessa vez não pra praça como sempre faço, mas pra entrada do bar, tentando me esquivar um pouco do sol. Pena que não estou tão próxima da mesa ao lado para ouvir o papo. Continuo dando as minhas 35 mastigadas no torresmo, por ordens médicas, paradoxalmente, é isso que me faz ver melhor e ouvir melhor pra poder fofocar melhor.
Plaça de Masadas. Foto: Ieda Magri.
Também tem um livro diante de mim que me ajuda a prestar atenção nas coisas ao redor em vez de me desligar delas e prestar atenção no que leio. De outro ponto de vista, como será que veem essas pessoas a minha cena? Como será que fofocariam depois a cena de uma pessoa que fala uma língua esquisita para seu celular — porque estou caçando o rato e falando da caçada para não esquecer dela mais tarde — e que pretende ler um livro enquanto come torresmos, bebe vermute às 2h40 da tarde e olha ao redor meio atarantada? Se agora eu contasse o que tem no livro que supostamente estou lendo, a fofoca começaria de verdade.
Fuçando nas estantes dos meus anfitriões, achei Varados en Río [algo como Encalhados no Rio], do autor madrilenho Javier Montes, um romance sobre a sua temporada de dois anos no Rio de Janeiro seguindo as pegadas de Rosa Chacel e Manuel Puig, sobretudo, mas também de Elizabeth Bishop e de Stefan Zweig em seus exílios no Rio. Ele me dá exemplos do tipo de fofoca de que estou falando. Eis um: o narrador conta que o crítico literário Antonio Maura lembra de uma visita que Rosa Chacel fez a Clarice Lispector: “Ángel Crespo me contou pessoalmente a visita que fizeram juntos a Clarice Lispector, que vivia então em um apartamento no Leme. Comentava que depois da visita e de sentir a presença felina, inquisitiva, cheia de silêncios da autora de A paixão segundo GH, Rosa Chacel teria falado: ‘Essa não é uma mulher, é uma pantera’”.
A fofoca como motor
A estrutura sofisticada da fofoca (Javier diz que Maura diz que Crespo contou ele próprio que Rosa Chacel teria dito) lembra a de Respiração artificial, de Ricardo Piglia. Agora, os autores poderiam se ofender quando chamo sua literatura de fofoca. Preferiam que se dissesse que é um trabalho sério. Mas a fofoca também é: envolve muita gente e passá-la adiante requer boa observação, astúcia no modo de contar a coisa, dosagem na entrega da informação mais importante, dando tensão ao relato e orientando para um fim conclusivo (moralizante ou não, engraçado ou não). O próprio Javier Montes, numa das partes do livro a que se dedica a falar de Cai a noite tropical, analisa a fofoca como motor dos livros de Puig. A famosa tia que fala em todos os livros e que encarna a fofoqueira de província, muito parecida àquela minha vizinha que me arruinou a adolescência. E tem livro mais interessante, mais profundamente investigativo da vida e da morte, da melancolia e da perda da juventude, dos desatinos do amor? Um livro fofoqueiro profundíssimo no qual, entre outras fofocas maiores ou menores, Luci conta a Nidia tudo o que conta a psicóloga Silvia sobre seus amores difíceis com um homem esquivo. Diz Javier: “O uso da fofoca como cadeia de relatos se torna muito sofisticado: quem escreve (quem transcreve, na verdade, porque não há no livro narrador no sentido estrito e tudo se resolve em conversações e cartas) nos conta que Luci conta a Nidia o que Silvia contou a ela. E pouco a pouco adivinhamos que Luci inventa, enriquece, engorda, supõe, o que vai contando a Nidia”. E, a partir de Edgardo Cozarinsky, autor de El museo del chisme: “A fofoca é antes de tudo relato transmitido, colocado em cena. A fofoca celebra a cerimônia da transmissão do relato, representa visivelmente essa relação que o texto impresso media entre o autor e o leitor”.
Agora, a fofoca também pode ser um agente de destruição na vida real e outra coisa na literatura, mesmo quando é o motor dela. Na minha janela da observação — a biblioteca dos meus anfitriões — pesquei outro livro espanhol: Um amor, de Sara Mesa. Quem me fofocou sobre ele foi El País. Estou completamente aturdida pelo livro e pela autora. É literatura contemporânea antiquíssima: o que estou dizendo é que o livro de Sara Mesa é lento, tem um “impulso narrativo fraco”, como o pensa Vivian Gornick, ao colher pequenas narrativas diárias nas ruas de Nova York, em The Odd Woman and the City [A mulher singular e a cidade], e chega, sem que você perceba, ao coração e o aperta. Acho que o centro da fofoca que ela conta está todo numa frase (“Deixa eu entrar um pouquinho”) dita por um homem rude de um vilarejo do interior onde uma mulher se refugia tentando caçar alguma coisa que dê significado à sua existência, observando formigas e outros seres vivos mais interessantes que os humanos. O homem não está pedindo para entrar na casa, mas nela. Tudo é inimaginável, e eu não quero contar a fofoca toda porque vocês merecem ler na forma que a autora a conta, que é a melhor forma jamais encontrada. Dosificada, terrível, linda e surpreendente a cada página.
Claro que há outro tipo de fofoca operando no livro, aquela mais insidiosa, aquela que aparece como ameaça seja nos livros de Puig, seja na minha memória da juventude, que poderia ficar comprometida pelo trabalho das (más) línguas das vizinhas. Um dos meus irmãos diz que aquela nossa cidade devia se chamar capital mundial da fofoca, não da amizade. Qual cidade pequena não é? Qual comunidade, por mínima que seja, de amigos, de confrades, não é? É preciso ter atenção, curiosidade e ouvido atento para transformar a fofoca e seus efeitos em literatura. Nem sempre dá, mas quando dá, nós, leitores, agradecemos mil vezes e esperamos a próxima.
Ieda Magri nasceu em Águas Frias, Santa Catarina, e vive no Rio de Janeiro. Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ e professora na UERJ, publicou os romances Um crime bárbaro (Autêntica, 2022), Ninguém (7Letras, 2016) e Olhos de bicho (Rocco, 2013) – bolsa Funarte de Criação Literária e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura –, além do livro de contos Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007). Pela Relicário publicou o livro Uma exposição, 2º lugar no prêmio Machado de Assis (Romance) da Biblioteca Nacional 2022.
De vários anos para cá, cursos e obras sobre o que se costumou chamar de “escrita criativa” ganharam espaço não apenas nas universidades, inclusive com a oferta de pós-graduações específicas, mas em espaços livres e independentes de criação literária, na forma de oficinas esporádicas e workshops itinerantes. A “escrita criativa” está relacionada, em especial, com …
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COLUNA EXPERIMENTO ABERTO
A FOFOCA COMO IMPULSO DE LEITURA
Por Ieda Magri
Parece que em outras vidas fui uma fofoqueira: expus vidas alheias, usei coisas que sabia dos outros a meu favor, pelo menos foi o que me garantiu uma astróloga que consultei recentemente. Isso me fez pensar nas fofoqueiras todas da minha adolescência e então desconfio daquilo que estou começando a enunciar: a escrita e a leitura como um caso sofisticado de fofoca. Não é tão vulgar nem tão perigosa, também talvez saiba negociar melhor com a moralidade, mas o que é a vida literária hoje senão uma versão fofoqueira do que lemos e ouvimos dizer dos autores que admiramos ou desprezamos? E lemos para fazer outra coisa senão contar aos outros o que descobrimos?
“Sabe da última?”
Nesse comentário fofoqueiro, nem mesmo os mortos estão de fora: “Sabe o que disse uma vez Josefina Ludmer?” “Parece que o Javier Marías morreu de Covid.” “Picasso é excelente artista, claro, não se discute, mas o que ele disse pra aquela garota de menos de 20 anos…” E assim por diante.
Que outra coisa eu faço senão fofocar ao pretender que sou uma gata à procura do meu rato sentada na praça com o ouvido atento a todas as conversas que acontecem ao redor e com os olhos atentos a tudo o que se move? [Esse negócio do gato e do rato é de um conselho da Ursula Le Guin, que anotei do livro Contar es escuchar, uma coletânea ótima de ensaios pessoais e sobre a escrita. Ela fala daquele momento — que pode durar anos — em que a gente está entre um livro e outro e ainda não sabe sobre o que escrever: “O mais importante que posso dizer sobre esse período preliminar: não se apresse. Sua mente é como um gato que sai para caçar; nem sequer sabe com segurança o que está caçando. Escute. Seja paciente como o gato. Permaneça muito, muito atento, alerta, mas sempre paciente. Avance lentamente. Não obrigue a história a cobrar forma. Deixe que se mostre. Deixe que tome pulso. Não pare de escutar. Tome notas ou faça qualquer outra coisa se você tem medo de esquecer algo, mas não corra ao computador. Deixe que a história se acerque de você. Quando estiver pronta pra começar, você saberá.”]
Estou na Plaça Masadas, em La Sagreira, Barcelona. Pretendendo ser uma gata olhando por todos os lados para ver se um rato aparece, mas com calma, como sugere Le Guin. Na Catalunha estou há quarenta dias — na praça, menos de uma hora — e só/tudo o que encontrei foram uns ratos magros que fugiram. Mas, qual a diferença da vizinha do meu passado, que ficava na janela vendo tudo o que acontecia ao redor pra passar adiante na roda de chimarrão e a observadora da praça? Talvez a intenção: não necessariamente fazer dano às meninas púberes contando por aí os mínimos sinais de sedução próprios da idade e combatidos com a lei da Igreja e da moral. A intenção pode ser menos perversa.
Alguma coisa acontece
Uma mulher chega na mesa ao lado, faz um pedido de alguma coisa catalã e uma água com gás. Ela calmamente abre um livro, começa a lê-lo. Veste um cardigã creme, uma saia quadriculada, meias violetas e mocassim da mesma cor do cardigã. [Não é essa uma boa palavra? Parece um carro.] Seus olhos saltam do livro, ela olha para frente e esboça um sorriso. Estou de costas para o que ela vê, mas ela vai ficando mais feliz e, de repente, entra na cena um homem, ele se aproxima e a beija. Então ela fecha o livro e o coloca sobre a bolsa na cadeira ao lado. É Ali Smith. Eles conversam animadamente enquanto comem azeitonas: a tal “alguma coisa catalã” que ela pediu ao chegar e que agora já está sobre a mesa. Pedem um vermute. Basta imaginar que são amantes, e não noivos, e a fofoca se torna complexa. Pode até virar um romance.
Fofoquei a minha cena. Pronto. Enquanto isso, como meu torrezno de Soria, a nova tapa da El Empanat, ainda sem saber a fortuna que pagarei por ela – estava farejando um rato, nem me lembrei de olhar preços. Os belisquetes custam mais ou menos uns cinco euros nesta região, que não é a Barcelona mais turística. Mas vim pra comer o torresmo, pedi também um vermute e me sentei com os olhos voltados, dessa vez não pra praça como sempre faço, mas pra entrada do bar, tentando me esquivar um pouco do sol. Pena que não estou tão próxima da mesa ao lado para ouvir o papo. Continuo dando as minhas 35 mastigadas no torresmo, por ordens médicas, paradoxalmente, é isso que me faz ver melhor e ouvir melhor pra poder fofocar melhor.
Plaça de Masadas. Foto: Ieda Magri.
Também tem um livro diante de mim que me ajuda a prestar atenção nas coisas ao redor em vez de me desligar delas e prestar atenção no que leio. De outro ponto de vista, como será que veem essas pessoas a minha cena? Como será que fofocariam depois a cena de uma pessoa que fala uma língua esquisita para seu celular — porque estou caçando o rato e falando da caçada para não esquecer dela mais tarde — e que pretende ler um livro enquanto come torresmos, bebe vermute às 2h40 da tarde e olha ao redor meio atarantada? Se agora eu contasse o que tem no livro que supostamente estou lendo, a fofoca começaria de verdade.
Fuçando nas estantes dos meus anfitriões, achei Varados en Río [algo como Encalhados no Rio], do autor madrilenho Javier Montes, um romance sobre a sua temporada de dois anos no Rio de Janeiro seguindo as pegadas de Rosa Chacel e Manuel Puig, sobretudo, mas também de Elizabeth Bishop e de Stefan Zweig em seus exílios no Rio. Ele me dá exemplos do tipo de fofoca de que estou falando. Eis um: o narrador conta que o crítico literário Antonio Maura lembra de uma visita que Rosa Chacel fez a Clarice Lispector: “Ángel Crespo me contou pessoalmente a visita que fizeram juntos a Clarice Lispector, que vivia então em um apartamento no Leme. Comentava que depois da visita e de sentir a presença felina, inquisitiva, cheia de silêncios da autora de A paixão segundo GH, Rosa Chacel teria falado: ‘Essa não é uma mulher, é uma pantera’”.
A fofoca como motor
A estrutura sofisticada da fofoca (Javier diz que Maura diz que Crespo contou ele próprio que Rosa Chacel teria dito) lembra a de Respiração artificial, de Ricardo Piglia. Agora, os autores poderiam se ofender quando chamo sua literatura de fofoca. Preferiam que se dissesse que é um trabalho sério. Mas a fofoca também é: envolve muita gente e passá-la adiante requer boa observação, astúcia no modo de contar a coisa, dosagem na entrega da informação mais importante, dando tensão ao relato e orientando para um fim conclusivo (moralizante ou não, engraçado ou não). O próprio Javier Montes, numa das partes do livro a que se dedica a falar de Cai a noite tropical, analisa a fofoca como motor dos livros de Puig. A famosa tia que fala em todos os livros e que encarna a fofoqueira de província, muito parecida àquela minha vizinha que me arruinou a adolescência. E tem livro mais interessante, mais profundamente investigativo da vida e da morte, da melancolia e da perda da juventude, dos desatinos do amor? Um livro fofoqueiro profundíssimo no qual, entre outras fofocas maiores ou menores, Luci conta a Nidia tudo o que conta a psicóloga Silvia sobre seus amores difíceis com um homem esquivo. Diz Javier: “O uso da fofoca como cadeia de relatos se torna muito sofisticado: quem escreve (quem transcreve, na verdade, porque não há no livro narrador no sentido estrito e tudo se resolve em conversações e cartas) nos conta que Luci conta a Nidia o que Silvia contou a ela. E pouco a pouco adivinhamos que Luci inventa, enriquece, engorda, supõe, o que vai contando a Nidia”. E, a partir de Edgardo Cozarinsky, autor de El museo del chisme: “A fofoca é antes de tudo relato transmitido, colocado em cena. A fofoca celebra a cerimônia da transmissão do relato, representa visivelmente essa relação que o texto impresso media entre o autor e o leitor”.
Agora, a fofoca também pode ser um agente de destruição na vida real e outra coisa na literatura, mesmo quando é o motor dela. Na minha janela da observação — a biblioteca dos meus anfitriões — pesquei outro livro espanhol: Um amor, de Sara Mesa. Quem me fofocou sobre ele foi El País. Estou completamente aturdida pelo livro e pela autora. É literatura contemporânea antiquíssima: o que estou dizendo é que o livro de Sara Mesa é lento, tem um “impulso narrativo fraco”, como o pensa Vivian Gornick, ao colher pequenas narrativas diárias nas ruas de Nova York, em The Odd Woman and the City [A mulher singular e a cidade], e chega, sem que você perceba, ao coração e o aperta. Acho que o centro da fofoca que ela conta está todo numa frase (“Deixa eu entrar um pouquinho”) dita por um homem rude de um vilarejo do interior onde uma mulher se refugia tentando caçar alguma coisa que dê significado à sua existência, observando formigas e outros seres vivos mais interessantes que os humanos. O homem não está pedindo para entrar na casa, mas nela. Tudo é inimaginável, e eu não quero contar a fofoca toda porque vocês merecem ler na forma que a autora a conta, que é a melhor forma jamais encontrada. Dosificada, terrível, linda e surpreendente a cada página.
Claro que há outro tipo de fofoca operando no livro, aquela mais insidiosa, aquela que aparece como ameaça seja nos livros de Puig, seja na minha memória da juventude, que poderia ficar comprometida pelo trabalho das (más) línguas das vizinhas. Um dos meus irmãos diz que aquela nossa cidade devia se chamar capital mundial da fofoca, não da amizade. Qual cidade pequena não é? Qual comunidade, por mínima que seja, de amigos, de confrades, não é? É preciso ter atenção, curiosidade e ouvido atento para transformar a fofoca e seus efeitos em literatura. Nem sempre dá, mas quando dá, nós, leitores, agradecemos mil vezes e esperamos a próxima.
Ieda Magri nasceu em Águas Frias, Santa Catarina, e vive no Rio de Janeiro. Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ e professora na UERJ, publicou os romances Um crime bárbaro (Autêntica, 2022), Ninguém (7Letras, 2016) e Olhos de bicho (Rocco, 2013) – bolsa Funarte de Criação Literária e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura –, além do livro de contos Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007). Pela Relicário publicou o livro Uma exposição, 2º lugar no prêmio Machado de Assis (Romance) da Biblioteca Nacional 2022.
Um comentário em “COLUNA EXPERIMENTO ABERTO”
Natália Nami
Muito bom
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