Eu pretendia continuar aqui na coluna os comentários sobre a Flip “vegetal”, que comecei a escrever em dezembro de 2021. No entanto me sinto impelido a interromper a série logo em seu início, para narrar algo que aconteceu: uma cena simples, dessas que deixam a gente pensando, mas que sossegam a alma.
Era um dia de semana, à noite. Eu dirigia numa avenida em São Paulo. Havia obras à frente e um estreitamento de pistas. Naquela hora as pessoas estão em geral cansadas e irritadas, voltando do trabalho. Um pequeno engarrafamento é suficiente para criar um clima tenso. Há também a questão psicológica: muita gente se sente cheia de poder com o volante nas mãos, e sabemos que o Brasil de hoje é um velho oeste onde a cortesia é planta raríssima. Em suma, os carros iam se apertando até ver quem deixava, muito a contragosto, o outro passar.
Subitamente, paramos todos. Um caminhão manobrava, interrompendo a única pista que sobrara. Não havia o que fazer senão esperar.
Foi então que reparei na moto à nossa frente, dessas que furam o sinal e passam zunindo entre os carros, levando uma pizza ou sei lá o quê. Após algum tempo no Brasil, a sensação é ambígua sempre que vejo uma moto dessas. Por um lado, elas representam um perigo, aliás muito maior para quem está na própria moto do que para quem dirige um carro. Por outro, o sintoma é claríssimo: estamos diante da chaga do trabalho precário, que fica ainda mais precário num país governado por uma besta (apocalíptica).
Mas voltemos à cena. Num uniforme de cores fortes e tarjas fosforescentes, um homem de meia-idade, alto e esguio, coordenava o fluxo dos veículos. Ele vinha em nossa direção, pronto a retirar os cones que interrompiam o trânsito enquanto o caminhão terminava de manobrar. Havia algo de elegante na figura, um negaceio nos passos e uma calma que deixava o povo dos carros completamente aturdido. Bem podia ser o sujeito elegante que “porta uma dor” como se fosse um amuleto, ou “um milhão de dólares, ou algo que os valha”, naqueles versos de Leminski magnificamente musicados por Itamar Assumpção.
O sujeito se aproximava, meio lento e meio ágil, enquanto o motoqueiro do aplicativo o encarava, acelerando com impaciência. Então o homem elegante levantou um cone de um único golpe e veio na direção do motoqueiro. Só que parecia não haver espaço suficiente para que ele passasse, já que entre a moto e um outro caminhão, ali parado, havia um vão mínimo.
No instante que antecedeu o encontro dos dois, eu e Andréa fixamos nosso olhar na cena. Haveria insolência na maneira como o sujeito avançava, sem pressa aparente, meio que bailando no asfalto? E como descrever o que então aconteceu?
Em mais um golpe súbito, o sujeito elegante levantou o cone bem alto, de forma que passasse vertiginosamente sobre o capacete do motoqueiro. Enquanto fazia isso, num movimento rápido e delicado, seu outro braço se aproximou do rapaz da moto. Protegida por uma luva, sua mão deslizou e passou a um milímetro das costas do outro, como se o acariciasse. Não o tocou nem uma vez, mas se aproximou dele, percorrendo todo o contorno das suas costas, como se o abençoasse para a batalha daquela noite.
Não sei dizer se o rapaz da moto apreciou o gesto, mas, como nós, ele terá entendido o seu sentido.
Gosto de pensar que aquele encontro dissolveu toda a tensão da noite. Afinal, quando menos se podia crer, o tempo foi suspenso para que a delicadeza reinasse por um par de segundos, na carícia insuspeitada dos companheiros de classe.
Pedro Meira Monteiro é professor na Princeton University e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. Publicou Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Prêmio ABL de Ensaio 2013), Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, Conta-gotas: máximas e reflexões, e A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil” (este pela Relicário). Integrou o coletivo de curadores da Flip 2021.
ISTO É UM PANÓPTICO? ou NOTAS SOBRE TRADUÇÃO E TRADUZIR por Moacir Amâncio Sempre estranhei a língua portuguesa. Emoções e pensamentos não cabem direito nas palavras. Lendo Clarice Lispector, pelo modo como ela escrevia, percebi: falar e escrever são duas experiências básicas do traduzir. Falo na Clarice porque ela tem uma escrita colada ao …
UMA EDITORA PARA CHAMAR DE SUA por Ana Elisa Ribeiro Lá pela já remota adolescência, eu ficava intrigada com a maneira como os livros vinham ao mundo. Não tinha muita noção de que havia editoras e autores vivos, mas ficava imaginando que alguém punha livros para circular, além do autor das mal traçadas linhas. …
LI SEU DIÁRIO por Ana Elisa Ribeiro Não sei mais se era uma agenda ou um diário. Acho que não tinha cadeado. Eu me lembro da capa dura com o desenho do Garfield, que adorava e com quem me solidarizava no ódio às segundas-feiras. Isso passou. Hoje tenho mais horror aos domingos. E, às …
“ISSO É UMA LIVRARIA?” por Giuseppe Zani, da Jacaré Livros Em meados de agosto de 2021, durante a pandemia de Covid-19, abri as portas da Livraria Jacaré, com títulos de segunda mão, no fundo de uma galeria do bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Tinha muita dúvida se as pessoas viriam – eu …
COLUNA ASA DA PALAVRA
UM ENCONTRO DE CLASSE
por Pedro Meira Monteiro
Eu pretendia continuar aqui na coluna os comentários sobre a Flip “vegetal”, que comecei a escrever em dezembro de 2021. No entanto me sinto impelido a interromper a série logo em seu início, para narrar algo que aconteceu: uma cena simples, dessas que deixam a gente pensando, mas que sossegam a alma.
Era um dia de semana, à noite. Eu dirigia numa avenida em São Paulo. Havia obras à frente e um estreitamento de pistas. Naquela hora as pessoas estão em geral cansadas e irritadas, voltando do trabalho. Um pequeno engarrafamento é suficiente para criar um clima tenso. Há também a questão psicológica: muita gente se sente cheia de poder com o volante nas mãos, e sabemos que o Brasil de hoje é um velho oeste onde a cortesia é planta raríssima. Em suma, os carros iam se apertando até ver quem deixava, muito a contragosto, o outro passar.
Subitamente, paramos todos. Um caminhão manobrava, interrompendo a única pista que sobrara. Não havia o que fazer senão esperar.
Foi então que reparei na moto à nossa frente, dessas que furam o sinal e passam zunindo entre os carros, levando uma pizza ou sei lá o quê. Após algum tempo no Brasil, a sensação é ambígua sempre que vejo uma moto dessas. Por um lado, elas representam um perigo, aliás muito maior para quem está na própria moto do que para quem dirige um carro. Por outro, o sintoma é claríssimo: estamos diante da chaga do trabalho precário, que fica ainda mais precário num país governado por uma besta (apocalíptica).
Mas voltemos à cena. Num uniforme de cores fortes e tarjas fosforescentes, um homem de meia-idade, alto e esguio, coordenava o fluxo dos veículos. Ele vinha em nossa direção, pronto a retirar os cones que interrompiam o trânsito enquanto o caminhão terminava de manobrar. Havia algo de elegante na figura, um negaceio nos passos e uma calma que deixava o povo dos carros completamente aturdido. Bem podia ser o sujeito elegante que “porta uma dor” como se fosse um amuleto, ou “um milhão de dólares, ou algo que os valha”, naqueles versos de Leminski magnificamente musicados por Itamar Assumpção.
O sujeito se aproximava, meio lento e meio ágil, enquanto o motoqueiro do aplicativo o encarava, acelerando com impaciência. Então o homem elegante levantou um cone de um único golpe e veio na direção do motoqueiro. Só que parecia não haver espaço suficiente para que ele passasse, já que entre a moto e um outro caminhão, ali parado, havia um vão mínimo.
No instante que antecedeu o encontro dos dois, eu e Andréa fixamos nosso olhar na cena. Haveria insolência na maneira como o sujeito avançava, sem pressa aparente, meio que bailando no asfalto? E como descrever o que então aconteceu?
Em mais um golpe súbito, o sujeito elegante levantou o cone bem alto, de forma que passasse vertiginosamente sobre o capacete do motoqueiro. Enquanto fazia isso, num movimento rápido e delicado, seu outro braço se aproximou do rapaz da moto. Protegida por uma luva, sua mão deslizou e passou a um milímetro das costas do outro, como se o acariciasse. Não o tocou nem uma vez, mas se aproximou dele, percorrendo todo o contorno das suas costas, como se o abençoasse para a batalha daquela noite.
Não sei dizer se o rapaz da moto apreciou o gesto, mas, como nós, ele terá entendido o seu sentido.
Gosto de pensar que aquele encontro dissolveu toda a tensão da noite. Afinal, quando menos se podia crer, o tempo foi suspenso para que a delicadeza reinasse por um par de segundos, na carícia insuspeitada dos companheiros de classe.
Pedro Meira Monteiro é professor na Princeton University e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. Publicou Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Prêmio ABL de Ensaio 2013), Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, Conta-gotas: máximas e reflexões, e A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil” (este pela Relicário). Integrou o coletivo de curadores da Flip 2021.
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