Notexto anterior— o primeiro da minha coluna aqui no blog da Relicário — eu me referia a palavras que voam, pousam, descansam e se levantam novamente.
A ideia era imaginar que as palavras possam flutuar num espaço de plena diversão, distantes ainda do compromisso de significar. Seja dando piruetas ou por meio de gestos mais discretos, elas se exibem e se oferecem para que a gente monte uma frase ou reconheça um conceito. É preciso estar atento, sempre que as vemos juntas a divertir-se.
Santo Agostinho, de novo: em diálogo com o filho Adeodato, ele recorda a etimologia de significar. Significar é signa facere, fazer sinais.
Para evitar uma ideia muito solene sobre essa divertida linguagem de sinais, digamos que as palavras são vagalumes. Cabe a nós juntá-las, buscando algum sentido luminoso neste nosso mundo sem sentido em que tudo parece prestes a mergulhar no escuro. Ailton Krenak fala de paraquedas coloridos. Gosto da ideia dos vagalumes que se divertem na nossa frente, tentando-nos com seu jogo pueril: faça uma frase, pense em algo, lembre de alguém… venha brincar com a gente!
Acho que estou influenciado pela emoção de revisitar oMemorial Vagalumes, que presta homenagem a indígenas mortos pela Covid-19.
Três vagalumes
São muitos, e naturalmente não são todos. Alguns, conhecidos, outros não.
Há por exemplo um “adolescente Yanomami” de 15 anos, que ficou indo de um lugar a outro atrás de tratamento e chegou a receber alta de um hospital em Boa Vista sem sequer ser submetido a um teste de Covid. O diagnóstico só foi confirmado dois dias antes de sua morte, quando já era tarde.
Ele morava numa aldeia às margens do Uraricoera (é, isso mesmo, na beira do Uraricoera…), região pela qual entram os garimpeiros ilegais impulsionados pela barbárie sem freio do bolsonarismo. O site nos conta que o rapaz cursava o ensino fundamental numa escola da Comunidade Boqueirão, na Terra Indígena Boqueirão, dos povos Macuxi e Wapichana, no município de Alto Alegre, no norte de Roraima. Foi grandeaapreensão entre os Yanomamiquando a morte ocorreu.
Ou então lemos sobreMeriná, a “vó Bernaldina” e mãe adotiva de Jaider Esbell, que morreu aos 75 anos de idade no ano passado. “Parece ter sido gerada em um favo de mel de tão doce criatura”, escreveu Jaider em sua bela homenagem a essa sábia senhora Macuxi. Ela gostava “de abraçar, afagar, cuidar e especialmente cantar, sua nave para a plena extasia. Tinha aquela fé de mover montanhas e foi entre as montanhas que fez descer para o mundo as águas de suas raízes, entranhas da terra, por quem sempre lutou bravamente o berço para guardar seu corpo por merecimento”.
No obituário de Bernaldina noNew York Times, Jaider conta que ela se sentiu muito orgulhosa quando, em 2018, saiu pela primeira vez do Brasil e encontrou o Papa Francisco em Roma. Vó Bernaldina é uma das guerreiras responsáveis pelo estabelecimento da Terra Indígena Raposa do Sol. Eu queria muito tê-la ouvidocantando…
Ou entãoHigino Tenório, professor e arqueólogo do povo Tuyuka, do Alto Rio Negro, que devolvia vida aos desenhos nas pedras. Reproduzo aqui o que escreveu Raoni Valle, professor da UFOPA, em Santarém: “Basicamente, Higino Tenório, como Kiti Masigʉ e Kumu, via e sentia as formas vivas, na sua integridade e fluidez orgânica de seres vivos em seus ecossistemas interconectados. Os petróglifos, portanto, constituem-se como ecossistemas vivos, integrados aos lugares, seres e mentes humanas e não humanas. Formam uma rede neural ecologicamente estendida, tal é a filosofia da mente Kumuã. Foi isso que o mestre ensinou para a arqueologia amazônica e brasileira, sobre a vida cognitiva, social e espiritual da arte rupestre e dos lugares sagrados, ʉtã hori wametise”.
“Decolonização epistemológica”, como bem a nomeia Raoni Valle. Os depoimentos no Memorial Vagalumes são lindos. Destaco o que escreveu Daiara Figueroa, sobre “Tio Higino”: “Agora você sobe para se encontrar com Tio Feliciano [Lana] e os outros, com certeza será muito bem recebido na maloca de pedras brancas do céu. Expresso em nome de meu pai e de minha família as mais sinceras condolências a nossos familiares Tuyuka e aos amigos. Añû.”
Maloca no céu
O Memorial Vagalumes buscou inspiração na reflexão de Didi-Huberman sobre os minoritários insetos luminosos.
Há uma passagem muito bonita em que o filósofo francês fala de um jovem aluno italiano que, durante a Segunda Guerra, cursava Letras em Bologna. Interessado em poesia (e em futebol, há que lembrar…), o estudante releu toda a Divina Comédia, embora buscasse, em Dante, “menos a perfeição composicional do grande poema” e mais “sua variedade labiríntica”. Menos a unidade e a beleza da língua, e mais “a exuberância de suas formas, de seus torneios, de seu apelo aos dialetos, às expressões comuns, aos jogos de palavras, às bifurcações”. Menos céu ideal, mais terra com suas paixões humanas, menos “luce”, mais “lucciole”, isto é, menos luz que cega e mais luzinhas que seguimos. (Em italiano “lucciole” são os vagalumes, assim como em francês, “lucioles”.)
O jovem que gostava de poesia e futebol se chamava Pier Paolo Pasolini e seria um dos grandes poetas e cineastas do século passado. O jovem Pasolini assistia então às aulas de Roberto Longhi, que buscava o jogo de sombras e luz na pintura florentina, mas se preocupava em falar também, diante do fascismo triunfante, sobre as luzes e sombras nos filmes de Jean Renoir e Charlie Chaplin.
No início de 1941, logo após o encontro entre Mussolini e Hitler, a defesa antiaérea alemã era projetada nas telas luminosas dos cinemas. A perseguição ao inimigo era implacável. Em contraste com a “glória luminosa” dos perseguidores, os resistentes pareciam pequenos vagalumes em fuga durante a noite, emitindo teimosamente os seus sinais. Vale a pena ler Didi-Huberman: “O universo dantesco é então completamente invertido: é o inferno que se expõe à luz do dia com seus políticos tronchos (terá Caetano pensado em Pasolini recentemente…?), superexpostos, gloriosos. Já os vagalumes tentam escapar como podem à ameaça, à condenação que de agora em diante toca sua existência”.
Feliz coincidência, em meio à tristeza: os vagalumes formam agora a maloca aérea a que se refere a sobrinha de Higino Tenório. São as pedras brancas no céu — aquelas mesmas estrelas que brilham na noite do Uraricoera, ou do igarapé Tietê — que vão se anunciando para quem quiser vê-las. Senhas de um outro caminho, de outro discurso, são elas as pedrinhas com as quais deveríamos brincar de fazer sentido, sempre que possível.
Pedro Meira Monteiro é professor na Princeton University e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. Publicou Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Prêmio ABL de Ensaio 2013), Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, Conta-gotas: máximas e reflexões, e A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil” (este pela Relicário). Integra o coletivo de curadores da Flip 2021.
Como não se iluminar com as “pequenas” luzes que formam uma teia imensa que produz um sentido-afetivo capaz de nos co-mover?
Texto lindo, parabéns Pedro.
A ESCRITA COMO DESAFIO E APERFEIÇOAMENTO DO ERRO Por Ieda Magri & Felipe Charbel No ano passado organizamos com o Rafael Gutiérrez uma coletânea de ensaios para a Relicário. A ideia era simples: cada um escreveria sobre o que bem entendesse, da forma como desejasse. Foi nossa única orientação. Se fosse para o livro …
O MISTÉRIO DA PREPARADORA por Ana Elisa Ribeiro Minha vida entre os livros começou cedo e a paixão por eles me levou a ambições que nunca me abandonaram, enquanto não se convertem em incômodas frustrações. Fui para a faculdade de Letras perseguindo uma ideia que sempre correu mais que eu, mas deu para me …
21 notas cartográficas [sobre Nós somos muitas, de Pedro Meira Monteiro] por Patrícia Lino 1. Na capa, o pronome “nós” divide-se, entrecortado, como um slide deslizante, em 4. Assim como o deslizante advérbio “muitas”, que se desmonta, no sentido contrário, em 6. O verbo, que não desliza nunca, une “nós” e “muitas”. Do lado esquerdo, …
SEMENTE, POESIA, LIVRO por Ana Elisa Ribeiro Desde bem criança achei que livros fossem objetos interessantes. Não tive dúvidas de que não davam em árvores nem achei que caíam do céu. De alguma maneira, o que eu ainda não percebia bem é que eles eram feitos por pessoas e chegavam às livrarias ou às …
COLUNA ASA DA PALAVRA
PALAVRA VAGALUME
por Pedro Meira Monteiro
No texto anterior — o primeiro da minha coluna aqui no blog da Relicário — eu me referia a palavras que voam, pousam, descansam e se levantam novamente.
A ideia era imaginar que as palavras possam flutuar num espaço de plena diversão, distantes ainda do compromisso de significar. Seja dando piruetas ou por meio de gestos mais discretos, elas se exibem e se oferecem para que a gente monte uma frase ou reconheça um conceito. É preciso estar atento, sempre que as vemos juntas a divertir-se.
Santo Agostinho, de novo: em diálogo com o filho Adeodato, ele recorda a etimologia de significar. Significar é signa facere, fazer sinais.
Para evitar uma ideia muito solene sobre essa divertida linguagem de sinais, digamos que as palavras são vagalumes. Cabe a nós juntá-las, buscando algum sentido luminoso neste nosso mundo sem sentido em que tudo parece prestes a mergulhar no escuro. Ailton Krenak fala de paraquedas coloridos. Gosto da ideia dos vagalumes que se divertem na nossa frente, tentando-nos com seu jogo pueril: faça uma frase, pense em algo, lembre de alguém… venha brincar com a gente!
Acho que estou influenciado pela emoção de revisitar o Memorial Vagalumes, que presta homenagem a indígenas mortos pela Covid-19.
Três vagalumes
São muitos, e naturalmente não são todos. Alguns, conhecidos, outros não.
Há por exemplo um “adolescente Yanomami” de 15 anos, que ficou indo de um lugar a outro atrás de tratamento e chegou a receber alta de um hospital em Boa Vista sem sequer ser submetido a um teste de Covid. O diagnóstico só foi confirmado dois dias antes de sua morte, quando já era tarde.
Ele morava numa aldeia às margens do Uraricoera (é, isso mesmo, na beira do Uraricoera…), região pela qual entram os garimpeiros ilegais impulsionados pela barbárie sem freio do bolsonarismo. O site nos conta que o rapaz cursava o ensino fundamental numa escola da Comunidade Boqueirão, na Terra Indígena Boqueirão, dos povos Macuxi e Wapichana, no município de Alto Alegre, no norte de Roraima. Foi grande a apreensão entre os Yanomami quando a morte ocorreu.
Ou então lemos sobre Meriná, a “vó Bernaldina” e mãe adotiva de Jaider Esbell, que morreu aos 75 anos de idade no ano passado. “Parece ter sido gerada em um favo de mel de tão doce criatura”, escreveu Jaider em sua bela homenagem a essa sábia senhora Macuxi. Ela gostava “de abraçar, afagar, cuidar e especialmente cantar, sua nave para a plena extasia. Tinha aquela fé de mover montanhas e foi entre as montanhas que fez descer para o mundo as águas de suas raízes, entranhas da terra, por quem sempre lutou bravamente o berço para guardar seu corpo por merecimento”.
No obituário de Bernaldina no New York Times, Jaider conta que ela se sentiu muito orgulhosa quando, em 2018, saiu pela primeira vez do Brasil e encontrou o Papa Francisco em Roma. Vó Bernaldina é uma das guerreiras responsáveis pelo estabelecimento da Terra Indígena Raposa do Sol. Eu queria muito tê-la ouvido cantando…
Ou então Higino Tenório, professor e arqueólogo do povo Tuyuka, do Alto Rio Negro, que devolvia vida aos desenhos nas pedras. Reproduzo aqui o que escreveu Raoni Valle, professor da UFOPA, em Santarém: “Basicamente, Higino Tenório, como Kiti Masigʉ e Kumu, via e sentia as formas vivas, na sua integridade e fluidez orgânica de seres vivos em seus ecossistemas interconectados. Os petróglifos, portanto, constituem-se como ecossistemas vivos, integrados aos lugares, seres e mentes humanas e não humanas. Formam uma rede neural ecologicamente estendida, tal é a filosofia da mente Kumuã. Foi isso que o mestre ensinou para a arqueologia amazônica e brasileira, sobre a vida cognitiva, social e espiritual da arte rupestre e dos lugares sagrados, ʉtã hori wametise”.
“Decolonização epistemológica”, como bem a nomeia Raoni Valle. Os depoimentos no Memorial Vagalumes são lindos. Destaco o que escreveu Daiara Figueroa, sobre “Tio Higino”: “Agora você sobe para se encontrar com Tio Feliciano [Lana] e os outros, com certeza será muito bem recebido na maloca de pedras brancas do céu. Expresso em nome de meu pai e de minha família as mais sinceras condolências a nossos familiares Tuyuka e aos amigos. Añû.”
Maloca no céu
O Memorial Vagalumes buscou inspiração na reflexão de Didi-Huberman sobre os minoritários insetos luminosos.
Há uma passagem muito bonita em que o filósofo francês fala de um jovem aluno italiano que, durante a Segunda Guerra, cursava Letras em Bologna. Interessado em poesia (e em futebol, há que lembrar…), o estudante releu toda a Divina Comédia, embora buscasse, em Dante, “menos a perfeição composicional do grande poema” e mais “sua variedade labiríntica”. Menos a unidade e a beleza da língua, e mais “a exuberância de suas formas, de seus torneios, de seu apelo aos dialetos, às expressões comuns, aos jogos de palavras, às bifurcações”. Menos céu ideal, mais terra com suas paixões humanas, menos “luce”, mais “lucciole”, isto é, menos luz que cega e mais luzinhas que seguimos. (Em italiano “lucciole” são os vagalumes, assim como em francês, “lucioles”.)
O jovem que gostava de poesia e futebol se chamava Pier Paolo Pasolini e seria um dos grandes poetas e cineastas do século passado. O jovem Pasolini assistia então às aulas de Roberto Longhi, que buscava o jogo de sombras e luz na pintura florentina, mas se preocupava em falar também, diante do fascismo triunfante, sobre as luzes e sombras nos filmes de Jean Renoir e Charlie Chaplin.
No início de 1941, logo após o encontro entre Mussolini e Hitler, a defesa antiaérea alemã era projetada nas telas luminosas dos cinemas. A perseguição ao inimigo era implacável. Em contraste com a “glória luminosa” dos perseguidores, os resistentes pareciam pequenos vagalumes em fuga durante a noite, emitindo teimosamente os seus sinais. Vale a pena ler Didi-Huberman: “O universo dantesco é então completamente invertido: é o inferno que se expõe à luz do dia com seus políticos tronchos (terá Caetano pensado em Pasolini recentemente…?), superexpostos, gloriosos. Já os vagalumes tentam escapar como podem à ameaça, à condenação que de agora em diante toca sua existência”.
Feliz coincidência, em meio à tristeza: os vagalumes formam agora a maloca aérea a que se refere a sobrinha de Higino Tenório. São as pedras brancas no céu — aquelas mesmas estrelas que brilham na noite do Uraricoera, ou do igarapé Tietê — que vão se anunciando para quem quiser vê-las. Senhas de um outro caminho, de outro discurso, são elas as pedrinhas com as quais deveríamos brincar de fazer sentido, sempre que possível.
Pedro Meira Monteiro é professor na Princeton University e é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. Publicou Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Prêmio ABL de Ensaio 2013), Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil, Conta-gotas: máximas e reflexões, e A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em “Raízes do Brasil” (este pela Relicário). Integra o coletivo de curadores da Flip 2021.
Um comentário em “COLUNA ASA DA PALAVRA”
Margareth
Como não se iluminar com as “pequenas” luzes que formam uma teia imensa que produz um sentido-afetivo capaz de nos co-mover?
Texto lindo, parabéns Pedro.
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