O que poderão a literatura e a arte no nosso mundo, hoje? Como é que elas podem ser “por nós”? Cortázar dizia ser a literatura uma das formas da felicidade humana. Para Fernando Pessoa, ela era uma confissão de que a vida não basta. E como respondemos a essa pergunta daqui do coração de um mundo que tende à ruína, em meio a ondas de genocídio e ecocídio – um mundo que, tal como o conhecemos, claramente não tem como bancar a esfrega do Antropoceno?
Na virada do século XVIII para o século XIX, viveu no Japão o poeta Kobayashi Issa. Ele é tido como um dos quatro grandes mestres do haicai, e seu nom de plume Issa, que significa “taça de chá”, diz muito sobre sua proposta estética e de vida. Foi um poeta das coisas simples, cantou os insetos, as aves, os pequenos animais. O poema transcrito acima, na epígrafe deste texto (em tradução de Paulo Franchetti e Elza Taeko Doi), é um dos meus favoritos. Parece-me que Issa fala, de um modo que não poderia ser mais despojado, da síntese de ofício (poético?) e vida. Ora, o apanhador de nabos mostra o caminho com um nabo – é claro. E se talvez seja arrogância demasiada imaginar que o artista ou o poeta indiquem com sua obra um caminho supostamente “correto”, pelo menos eles tentam, em tese, sugerir que os caminhos são vários, e não se limitam àquele que temos debaixo dos olhos e dos pés.
Numa edição recente do programa “De olho no mundo”, do Brazil LAB de Princeton, comandado por Sandra Kogut e Pedro Meira Monteiro, o artista e ativista Denilson Baniwa falou da representação dos indígenas na sua obra como uma maneira de subverter a expectativa colonialista do exótico. Numa das pinturas que mostrou na ocasião, um menino indígena senta-se no chão entre um cesto e um maracá, e tem no colo um computador. Assim, ele (o artista, o menino, o “Guardião das memórias”, como se intitula o quadro) nos mostra um caminho: um caminho possível. E reivindica um espaço para si, também, entre a sabedoria tradicional e a tecnologia contemporânea. No processo de reivindicar esse espaço coexistem arte e militância.
Naturalmente que a vida não basta. É do humano também este buraco no peito, esta incompletude. A vida poderia se bastar em seu não bastar, quem sabe, fosse esse “somente” um problema de cunho filosófico. Mas, diante da carestia de tanto do que temos vivido e testemunhado, há que se emprestar um pouco mais a ela, a esta vida que para muitos anda estreita: significado, dignidade, alegria, tanta coisa. Assim como o apanhador de nabos de Issa mostrava – e continua mostrando – o caminho com um nabo, muitos de nossos melhores artistas indicam, com seu trabalho, veredas possíveis nesta barafunda que é o mundo humano no ano de 2021.
O poema de Issa é literal: o ofício da vida é um modo de indicar o caminho. Se somos apanhadores de nabo, contudo, sempre existirá o risco de reduzir o que se desenrola ao nosso redor à “perspectiva do nabo”. É o outro lado da moeda. Mas vida e criação ocupam um mesmo espaço e uma não existe sem a outra. O nosso trabalho é, também, ferramenta de criação do mundo que habitamos, essa gênese cotidiana do nosso arroz com feijão. Empunhamos computadores, maracás, nabos, bicicletas, telefones celulares, ramos de flores, pincéis, britadeiras, canetas, enxadas, títulos eleitorais. Resta saber por onde pretendemos seguir e de que maneiras faremos confluir os nossos caminhos.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem,Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas), Deriva, O vivo (os dois últimos pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
por Ana Chiara* Ao extrair um retrato 3×4 de um poema do livro A Retornada, de Laura Erber, cuido para que a força de sua poesia não se disperse na multiplicidade de vozes do seu tempo. Como pinçar algo tênue sendo ao mesmo tempo tão forte? Como trazer ao instantâneo de leitura o flagrante da …
GÊNIOS por Adriana Lisboa Perde-se a conta de quantas vezes a palavra “gênio” aparece na biografia de Leonardo da Vinci publicada por Walter Isaacson em 2017. O historiador e autor best-seller afirma que Leonardo foi “o mais criativo gênio da história”. Ao longo das seiscentas páginas do livro, pairam alguns fascinantes enigmas sobre a …
URUÇUMIRIM VIVE por Rafael Freitas da Silva Repousa exatamente na mesa do prefeito da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro um decreto, com verificação fidedigna do estágio de localização do documento por meio do acesso ao protocolo público, uma folha de papel que tem o poder de transcender a história e a identidade …
RELICÁRIO EM CÍRCULOS por Pedro Meira Monteiro Gosto muito da forma como a Relicário se apresenta, com uma definição retirada do dicionário: Rel. Caixa ou baú onde se guardam objetos pertencentes a um santo ou que foram por ele tocados. 2. Caixa ou baú onde se guardam objetos de grande valor afetivo. 3. Bolsinha com relíquias …
COLUNA ALFAIATARIA
NABOS, COMPUTADORES E MARACÁS
por Adriana Lisboa
O apanhador de nabos
Mostra o caminho
Com um nabo
– Kobayashi Issa (1763-1826)
O que poderão a literatura e a arte no nosso mundo, hoje? Como é que elas podem ser “por nós”? Cortázar dizia ser a literatura uma das formas da felicidade humana. Para Fernando Pessoa, ela era uma confissão de que a vida não basta. E como respondemos a essa pergunta daqui do coração de um mundo que tende à ruína, em meio a ondas de genocídio e ecocídio – um mundo que, tal como o conhecemos, claramente não tem como bancar a esfrega do Antropoceno?
Na virada do século XVIII para o século XIX, viveu no Japão o poeta Kobayashi Issa. Ele é tido como um dos quatro grandes mestres do haicai, e seu nom de plume Issa, que significa “taça de chá”, diz muito sobre sua proposta estética e de vida. Foi um poeta das coisas simples, cantou os insetos, as aves, os pequenos animais. O poema transcrito acima, na epígrafe deste texto (em tradução de Paulo Franchetti e Elza Taeko Doi), é um dos meus favoritos. Parece-me que Issa fala, de um modo que não poderia ser mais despojado, da síntese de ofício (poético?) e vida. Ora, o apanhador de nabos mostra o caminho com um nabo – é claro. E se talvez seja arrogância demasiada imaginar que o artista ou o poeta indiquem com sua obra um caminho supostamente “correto”, pelo menos eles tentam, em tese, sugerir que os caminhos são vários, e não se limitam àquele que temos debaixo dos olhos e dos pés.
Numa edição recente do programa “De olho no mundo”, do Brazil LAB de Princeton, comandado por Sandra Kogut e Pedro Meira Monteiro, o artista e ativista Denilson Baniwa falou da representação dos indígenas na sua obra como uma maneira de subverter a expectativa colonialista do exótico. Numa das pinturas que mostrou na ocasião, um menino indígena senta-se no chão entre um cesto e um maracá, e tem no colo um computador. Assim, ele (o artista, o menino, o “Guardião das memórias”, como se intitula o quadro) nos mostra um caminho: um caminho possível. E reivindica um espaço para si, também, entre a sabedoria tradicional e a tecnologia contemporânea. No processo de reivindicar esse espaço coexistem arte e militância.
Naturalmente que a vida não basta. É do humano também este buraco no peito, esta incompletude. A vida poderia se bastar em seu não bastar, quem sabe, fosse esse “somente” um problema de cunho filosófico. Mas, diante da carestia de tanto do que temos vivido e testemunhado, há que se emprestar um pouco mais a ela, a esta vida que para muitos anda estreita: significado, dignidade, alegria, tanta coisa. Assim como o apanhador de nabos de Issa mostrava – e continua mostrando – o caminho com um nabo, muitos de nossos melhores artistas indicam, com seu trabalho, veredas possíveis nesta barafunda que é o mundo humano no ano de 2021.
O poema de Issa é literal: o ofício da vida é um modo de indicar o caminho. Se somos apanhadores de nabo, contudo, sempre existirá o risco de reduzir o que se desenrola ao nosso redor à “perspectiva do nabo”. É o outro lado da moeda. Mas vida e criação ocupam um mesmo espaço e uma não existe sem a outra. O nosso trabalho é, também, ferramenta de criação do mundo que habitamos, essa gênese cotidiana do nosso arroz com feijão. Empunhamos computadores, maracás, nabos, bicicletas, telefones celulares, ramos de flores, pincéis, britadeiras, canetas, enxadas, títulos eleitorais. Resta saber por onde pretendemos seguir e de que maneiras faremos confluir os nossos caminhos.
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem, Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas), Deriva, O vivo (os dois últimos pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
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