A travessia destes tempos pode parecer, muitas vezes, o escuro interior de um túnel de extensão indefinida. Noutros momentos, é um rio de terceiras margens. Ou então um sertão-deserto de pendor bíblico, com a diferença de que, na fórmula do ódio contemporâneo, os deuses andam arredios, sem saber se mordem ou se assopram. Mas e se o vau do mundo for a alegria, como suspeitava Riobaldo em Grande Sertão? Será assim que se transpõe isto aqui, então – ou, pelo menos, será a alegria uma forma digna e valente de existir e resistir?
Tenho pensado na ideia da alegria como resistência. Recentemente, visitei uma instalação de Yayoi Kusama chamada All the Eternal Love I Have for the Pumpkins (“Todo o amor eterno que tenho pelas abóboras”), sala de espelhos infinitos cujo chão é forrado com várias abóboras de acrílico recobertas de bolinhas pretas, espécie de assinatura da artista, e iluminadas por dentro. Estar no interior da sala de espelhos de Kusama deixou, em mim, uma marca essencial: a da alegria. E para viver essa alegria não é preciso ter qualquer conhecimento da biografia da artista nem que seu trabalho vem sendo, há décadas, um modo simultâneo de expressar e manter sob controle seus desafios de ordem psiquiátrica – Kusama, hoje com 92 anos, mora desde 1977 num hospital psiquiátrico em Tóquio, onde ela mesma se internou após uma grave crise.
“O vau do mundo é a coragem”, Riobaldo também diz. Atravessar, portanto, como observa Elizabeth Hazin no ensaio A terceira travessia, “significa perder o medo e aprender a alegria”. Mas o que fazer se, do lado de fora, o vau se confunde com um vão, um espaço que não temos como saber ao certo se será possível transpor? Talvez o pulo do gato – a abóbora de acrílico recoberta de bolinhas – seja desconfiar que o vau é do lado de dentro (com Caio Fernando Abreu: “Não vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir”). Essa alegria revolucionária, a possibilidade da sua existência, é algo que fica do lado de cá, no batidão de sístole e diástole. O borogodó do mundo, de grande intimidade e simplicidade, jamais dado por garantido, jamais eterno ou divino, que não se compra pagando dízimo. Nietzsche: “A objeção, o desvio, a desconfiança alegre, a vontade de troçar são sinais de saúde: tudo que é absoluto pertence à patologia”.
Janela para a liberdade. Uma alegria “de propósito”, como aventou ainda Riobaldo, e “por coragem”. O fazer-se dessa alegria me parece uma chave de braço em tanta vileza cinzenta ao nosso redor. Uma forma de oposição e resistência. E, ao clarear do dia, quando o sol bate e se firma, quem sabe seja possível desdobrá-la em mão que se estende, que acaricia, que acolhe, que oferta, que cuida. Sala de espelhos infinitos.
Aproveitamos para convidar você
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem,Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas), Deriva, O vivo (os dois últimos pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
MEMÓRIAS DE UM LIVREIRO por José Luiz Tahan, da Realejo Livros Nunca passou pela minha cabeça que a sequência de recados errados me levariam a esta vida vivida numa livraria. Há trinta e poucos anos eu era um garoto que gostava de desenhar e quando decidi buscar um emprego não tinha muita ideia do …
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RELICÁRIO EM CÍRCULOS por Pedro Meira Monteiro Gosto muito da forma como a Relicário se apresenta, com uma definição retirada do dicionário: Rel. Caixa ou baú onde se guardam objetos pertencentes a um santo ou que foram por ele tocados. 2. Caixa ou baú onde se guardam objetos de grande valor afetivo. 3. Bolsinha com relíquias …
COLUNA ALFAIATARIA
ALEGRIA E RESISTÊNCIA
por Adriana Lisboa
A travessia destes tempos pode parecer, muitas vezes, o escuro interior de um túnel de extensão indefinida. Noutros momentos, é um rio de terceiras margens. Ou então um sertão-deserto de pendor bíblico, com a diferença de que, na fórmula do ódio contemporâneo, os deuses andam arredios, sem saber se mordem ou se assopram. Mas e se o vau do mundo for a alegria, como suspeitava Riobaldo em Grande Sertão? Será assim que se transpõe isto aqui, então – ou, pelo menos, será a alegria uma forma digna e valente de existir e resistir?
“O vau do mundo é a coragem”, Riobaldo também diz. Atravessar, portanto, como observa Elizabeth Hazin no ensaio A terceira travessia, “significa perder o medo e aprender a alegria”. Mas o que fazer se, do lado de fora, o vau se confunde com um vão, um espaço que não temos como saber ao certo se será possível transpor? Talvez o pulo do gato – a abóbora de acrílico recoberta de bolinhas – seja desconfiar que o vau é do lado de dentro (com Caio Fernando Abreu: “Não vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir”). Essa alegria revolucionária, a possibilidade da sua existência, é algo que fica do lado de cá, no batidão de sístole e diástole. O borogodó do mundo, de grande intimidade e simplicidade, jamais dado por garantido, jamais eterno ou divino, que não se compra pagando dízimo. Nietzsche: “A objeção, o desvio, a desconfiança alegre, a vontade de troçar são sinais de saúde: tudo que é absoluto pertence à patologia”.
Janela para a liberdade. Uma alegria “de propósito”, como aventou ainda Riobaldo, e “por coragem”. O fazer-se dessa alegria me parece uma chave de braço em tanta vileza cinzenta ao nosso redor. Uma forma de oposição e resistência. E, ao clarear do dia, quando o sol bate e se firma, quem sabe seja possível desdobrá-la em mão que se estende, que acaricia, que acolhe, que oferta, que cuida. Sala de espelhos infinitos.
Aproveitamos para convidar você
Adriana Lisboa é autora dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo, Hanói, Todos os santos, dos poemas de Parte da paisagem, Pequena música (menção honrosa – Prêmio Casa de las Américas), Deriva, O vivo (os dois últimos pela Relicário), entre outros livros, traduzidos em mais de vinte países. Publicou em revistas como Modern Poetry in Translation e Granta.
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