A escrita em verso de Samuel Beckett (1906-1989) está presente desde o início de sua obra literária e o acompanha ao longo de toda a trajetória até seu último texto, escrito já no leito de hospital. Ela não é, como afirmam alguns, apenas um “laboratório” de sua prosa: funciona antes como lugar de condensação de uma série de referências pessoais e literárias, por meio das quais o autor vai dando tratos à própria concepção de literatura.
Nos versos de Beckett, observamos a recusa da postura poética autocomplacente e a exploração dos desvios da elegância convencional, dando livre curso à matéria baixa, ao humor ácido, ao jogo de palavra e à “gagueira” (como diz Deleuze) estilística. Estão aí em jogo tanto uma sensibilidade muito viva em relação ao drama (ao “absurdo”) existencial, quanto a contínua militância contra a estupidez humana, em suas diversas manifestações.
Beckett, como se sabe, é um dos raros autores que realiza ele próprio a tradução de vários de seus livros, construindo uma obra em francês e em inglês. Desafia, assim, a ideia de “original” e faz da relação entre idiomas um aspecto não acessório, mas integrado ao sentido da experiência literária. Como não podia deixar de ser, a prática está também na produção em versos, mostrando como a tradução é um tipo de escrita e, inversamente, como a escrita já é uma forma de tradução – isto é, que o interesse da escrita não está em sua singularidade estável, intocável, mas no gesto do transitar e do desdobrar, de um ter lugar em corpo e experiência.
Marcos Siscar