Numa de suas performances, Patrícia Lino pergunta ao ChatGPT: “can I eat a poem?” Com altivez ignorante, a máquina responde advogando o caráter incorpóreo da poesia: não, não se pode comer um poema.
A expansão acalentada neste livro sugere o contrário. A poesia pode avançar para além das palavras e do livro, atingindo mãos, ouvidos e o corpo todo. A linguagem se toca, criando uma zona prazerosa de experimentação intermedial: o poema morde o espaço e afeta tudo o que está à sua volta, incluindo aquilo que um dia chamamos de “leitor”.
O “dialeto coisal” almejado por um poeta que Lino estudou em livro anterior retorna, aqui, de forma muito mais radical. Não se trata mais do momento auroral da linguagem, como naqueles balbucios infantis em que som e sentido ainda não se divorciaram. A coisa toda é bem mais diabólica: feiticeira, a poesia se reinstala nos jogos que sempre a sustentaram, e o poema se converte naquilo que talvez nunca tenha deixado de ser: desenho, som, estruturas táteis — olfativas, gustativas etc.
Por meio de códigos QR, somos puxados para fora do livro. As infraleituras não escondem seu caráter ínfero e órfico, convidando-nos a retomar o corpo que o pensamento ocidental hegemônico ensina a resguardar com pudor. E se o gesto colonial se constrói sobre o apagamento dos corpos, a poesia hoje contra-ataca com e em corpos racializados e generificados. Isso sem falar da força das indefinições e de tudo que, banhado no caldo da indisciplina, ferve à sombra do cânone, fazendo-se desvio num corpus magistral.
Saibamos ler Patrícia Lino: o humor é um rio subterrâneo a reverberar tudo que ela faz. A erudição se desarma, sem nunca bater em retirada, e a autoridade cai por terra, estatelada em sua iminente inutilidade.
De volta à performance: diante da lição do ChatGPT sobre o caráter abstrato da expressão poética, Patrícia segue a provocá-lo, até que sua natureza se desnuda: inteligência sem corpo, em desesperada busca pela memória que não possui. Incapaz, portanto, de compreender a expansão por meio da qual o poema se torna experiência plena, potente e irresistível.
Pedro Meira Monteiro