“É uma verdade universalmente reconhecida que toda mulher possuidora de um útero e de um suprimento decente de óvulos deve estar em busca de um filho”, Sinéad Gleeson brinca com Jane Austen na abertura do ensaio “Sobre a natureza atômica dos trimestres”, em que destrincha diversas expectativas impostas a mulheres pelo ideal de feminilidade ocidental, da magreza à gravidez. Tomando o corpo sempre como ponto de partida, os ensaios que integram Constelações constituem um estudo amplo da experiência de habitar um corpo lido como feminino em um país como a Irlanda, onde o embate entre progresso e conservadorismo é mais do que uma expressão de diferenças geracionais, mas uma verdadeira tônica da vida cultural.
Compartilhando com leitores e leitoras experiências com diferentes condições médicas que marcaram seu relacionamento com o próprio corpo, a escritora analisa e critica a maneira como mulheres são tratadas pelo sistema de saúde. Habitando um corpo acometido pela doença repetidas vezes, desde a artrite monoarticular da menina à leucemia da mulher, Sinéad Gleeson costura a voz da pesquisadora à da autora para interrogar o que há de coletivo em suas frequentemente dolorosas experiências pessoais. Do sangue às vértebras, das complicações na gravidez à cabeça raspada e exibida desafiadoramente, Gleeson investiga construtos de gênero e a carga política por trás do confinamento da mulher na posição de objeto, nunca de sujeito, em um mundo codificado pelo olhar patriarcal.
Na edição da Relicário, Constelações traz ainda um presente para o leitor brasileiro: em “Eu sei o que é primavera: Clarice, crônicas e corcovado”, Gleeson discorre sobre uma das nossas grandes autoras – de crônicas, inclusive, gênero que também é tematizado no trabalho. Publicado em 2021, o texto relata Gleeson no Brasil e traz as crônicas de Clarice como companheiras de viagem que assombram também sua estada no país. Atravessado por questões políticas, com a crise democrática brasileira como pano de fundo, o ensaio-crônica é uma leitura instigante que pensa paralelos entre nossos países e a experiência de Clarice com o regime antidemocrático cuja ascensão lamentou. Com a tradução excelente de Maria Rita Viana, Constelações é uma leitura deliciosa e necessária.
Marcela Santos Brigida
Professora de literatura inglesa na Uerj