Um livro desconcertante de todas as maneiras que possa ser lido. Brilha como vida é um mergulho profundo na complexidade do amor entre mãe e filha. Se lido pelo ponto de vista da filha, nos conecta com o abandono extremo: uma criança em seus 8 meses sozinha num parque da Villa Borghese, em Roma, e que é descoberta por um passante, entregue a um instituto e somente depois dada em adoção a uma nova família, os Calandrone. Uma adolescente denunciada por maus-tratos, uma jovem que precisa dormir na rua porque sua mãe fecha a porta de casa quando se atrasa. Uma adulta que vive com a culpa de ter “enlouquecido” a mãe. Ou “matado” a mãe. As coisas se complicam porque há duas mães e o horror de tê-las decepcionado, o horror de perdê-las ou de já tê-las perdido. Mas na maior parte do tempo, não há nenhuma mãe, senão um amor enorme que fica vagando sem direção, ainda que a única destinatária esteja ali, ao alcance.
Se lido do ponto de vista da mãe verdadeira (ou seja, a adotiva, Ione Calandrone), é a dor, também terrível, de ter falhado sempre: primeiro por não ter tido filhos de sangue, depois por contar “o segredo” da adoção cedo demais e sofrer a dor de imaginar que perdeu a filha ao contá-lo. Da perspectiva dessa mãe, a falha leva à perda irreparável, ainda que falsa, ainda que pura armadilha do amor. Assim, o que sobressai nessa leitura é a separação, imposta como autopunição, entre o amor e o objeto amado. Aquela que a mãe ama se torna, para ela, o desamor.
Mas há ainda um outro modo de ler a história, do ponto de vista da mãe de sangue, aquela que abandona a filha no jardim gramado e depois se mata, se joga no rio porque não encontra saídas para sustentar a filha. Essa é uma história ainda mais dolorosa, porque a essa primeira mãe nem é dado o direito de errar com a filha. Ela errou ao amar um homem que não era seu marido e fugir com ele. Numa sociedade moralista, a filha chega como impedimento ao amor ilícito e a mãe paga com a própria vida. Assim como o amante, que, solidário, se joga com ela no Tibre.
Essas são três formas de contar a história de Brilha como vida, e ainda tem o pai e a nonna, figuras da maior importância para a narrativa da filha; tem a militância de esquerda, tem toda uma cultura italiana dos anos 1970 e 1980. Mas o livro não conta essas histórias, ele as coloca na mesa como peças, e os encaixes se dão aos solavancos, numa linguagem esburacada, abrupta, elíptica, ao modo de dizer da poesia, como se estivéssemos lendo um poema narrado com direito a rodapé, onde aparecem em duas matérias de jornal o primeiro abandono e a adoção, assim como a história da primeira mãe. E como cenas justapostas, como fotografias sobre a mesa – super 8 meio tremido meio desfocado –, aparece a história com a segunda mãe, a sofregamente amada, a “por mim fragorosamente decepcionada”, como lemos nas primeiras linhas desse texto perturbador. É um jogo de armar público-privado que retém toda a atenção do leitor, que se lê com o coração na mão.
Maria Grazia Calandrone nos conta uma história verdadeira em todos os sentidos da palavra, inclusive com os titubeios, as ambiguidades e o não compreensível de uma história verdadeira e nossa.
Ieda Magri