A autora Adriana Lisboa é a convidada da vez para esse novo encontro na nossa Roda de Conversa Virtual no Blog da Relicário. Nesta conversa, Adriana está rodeada por oito entrevistadores: a jornalista e conteudista Bárbara Krauss (@bdebarbarie); o escritor, poeta e professor Edimilson de Almeida Pereira; a escritora Juliana Leite; a agente literária Lucia Riff; a poeta Mariana Ianelli; a livreira Mônica Carvalho Pereira; o poeta Paulo Sabino e o escritor Rafael Gallo.
Em uma incursão totalmente nova em sua carreira literária, Adriana transformou a experiência do luto em relato autobiográfico. Seu texto é pontuado em referências zen-budistas e reflexões sobre finitude, mistério, memória, amor, lembranças familiares, o chão da terra, o verde da floresta, além das letras de autores que tanto lhe dizem nesse momento da vida.
Nesta roda, a literatura e a poesia em processo e feitura, se misturam a pintura, música, política, diferentes mundos, relações entre seres vivos e não vivos, a percepção dos leitores, a escrita como arrebatamento, paisagens.
Segunda-feira, dia 27 de junho, Adriana Lisboa autografa na Janela Livraria, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, o livro Todo o tempo que existe, em evento presencial gratuito, com conversa entre a autora e a livreira e editora Martha Ribas. E dia 28, terça-feira, é a vez em São Paulo, na Livaria da Tarde, com conversa entre a autora e a escritora e crítica literária Noemi Jaffe, e mediação de Mônica Carvalho.
Paulo Sabino:Adriana, nos seus mais recentes livros lançados pela Relicário, Deriva e O vivo, você pensou ambas as obras conceitualmente. Os livros possuem propostas claras quanto aos temas abordados. Para o Todo o tempo que existe houve também essa preocupação conceitual?
Adriana Lisboa:Todo o tempo que existe foi um livro composto de improviso. Eu lia A ridícula ideia de nunca mais te ver, da Rosa Montero, pouco após a perda do meu pai, ano passado, e uma determinada passagem me fez saltar do livro para o computador e escrever o meu ensaio num rompante, em três semanas. Foi parte do processo do luto e, como todo processo de luto, caótico. Mas no fim talvez o caos seja uma proposta conceitual também.
Mônica Carvalho Pereira: Em A louca da casa, Rosa Montero diz que escrever é expor um de seus órgãos internos e deixar que os outros lhe apontem dedos. Por outro lado, a elaboração coletiva de um luto tem se tornado mais frequente na literatura, em especial após a pandemia do coronavírus. Como você enxerga essa questão?
AL: Curiosamente, não tenho uma leitura dos textos sobre o luto produzidos nestes tempos pandêmicos. Minhas referências são, de modo geral, anteriores. E as experiências de perda estiveram, de um jeito ou de outro, presentes em muito do que escrevi até hoje – o romance Todos os santos, por exemplo, parte desse tema. A perda de alguém que se ama é radical, transformadora e íntima, mas ao mesmo tempo compartilhável, porque integra o rol das experiências humanas mais cruas e essenciais. Em toda escrita a gente se expõe de maneira brutal, como diz a Rosa. Todo o tempo que existe, porém, apesar de ser o livro em que por definição me exponho mais, é muito pouco ambicioso, então paradoxalmente me sinto menos exposta ali.
Bárbara Krauss: Todo o tempo que existe é sua primeira obra explicitamente autobiográfica: em que medida esse texto tem mais de você do que os trabalhos anteriores?
AL: Penso que tudo o que a gente escreve é, em certa medida, autobiográfico, porque parte do nosso olhar sobre o mundo e traz a nossa voz, e não tem como ser diferente. São os nossos processos mentais e de criação que estão ali no papel, mesmo num trabalho de ficção (e os temas que nos ocupam e nos preocupam). Em Todo o tempo que existe, o “eu” se assume como tal – ou seja, sou eu, Adriana, ali. Ao mesmo tempo, é um recorte transversal, do qual muita coisa fica de fora. E, no processo de selecionar, na hora da escrita, aquilo que entra no texto e aquilo que não entra, ela se torna curiosamente semelhante à escrita de ficção. Além do mais, construímos o tempo todo nossa identidade, também, com (e contra, muitas vezes) o que nos circunda.
Paulo Sabino: Quanto à sua escrita, você percebe diferença entre o Todo o tempo que existe e os demais livros que escreveu?
AL: Num certo sentido, sinto uma diferença essencial, que é o fato de que eu não “entro”, assumidamente, em nenhum dos meus livros, e Todo o tempo que existe é uma narrativa autobiográfica, embora eu tenha tentado evitar o voyeurismo de mim mesma, por assim dizer. Porém, os temas da memória, da ausência, do esquecimento, da perda, da transitoriedade, das construções que fazemos do “eu” (e da relação do humano com o não humano, que também comparece neste ensaio) me acompanham desde meu primeiro romance. Então é como se este novo livro viesse apenas tecer mais um comentário.
Mônica Carvalho Pereira:Adriana, ou seria melhor te chamar de Adrianas? São tantas… Romancista, poeta, contista, autora, musicista, palestrante, tradutora, pesquisadora. Você começou sua carreira na música. Quando a escrita te convocou a se profissionalizar e se tornou inescapável?
AL: A escrita me acompanha desde que eu era pixote – é, praticamente, paralela à leitura desde sempre. A música veio um pouco depois, no começo da adolescência. Talvez eu tenha tentado carreira em música porque ela me oferecia um pouco mais de “sociedade”, tocar e cantar em grupo versus a solidão da escrita. Mas na altura do meu recital de formatura em flauta transversa, na Uni-Rio, eu já sabia que aquilo ia ficar para trás, porque o que eu queria era escrever, e a música me tomava tempo demais. Então tentei a mão, muito canhestra, num primeiro romance, que concluí aos 26 anos e foi publicado três anos depois. Foi como me inaugurei como escritora, achando que já era uma espécie de pódio. Mal sabia que não era nem mesmo uma escada, porque num certo sentido estamos recomeçando sempre, a cada novo livro.
Edimilson de Almeida Pereira:Essa é uma pergunta conhecida, mas creio que seja importante para compreender os processos criativos de pessoasque escrevem prosa de ficção e poesia, ao mesmo tempo. De que maneira os recursos da linguagem poética interferem (se é que interferem) na sua prosa de ficção?
AL: Como a poesia faz parte da minha vida desde antes da prosa, embora eu só tenha começado a publicar poesia quinze anos depois da minha estreia como romancista, tenho a impressão de que uma atenção mais pormenorizada ao texto, à sua textura, cor, ao seu ritmo e às suas modulações é algo que herdo do convívio com os versos. Talvez também um gosto pelo silêncio, que é uma lição dos mestres japoneses de haikai, pela elipse. Na escrita de prosa, há muita coisa que fica intencionalmente de fora. Na construção de personagens, não sinto necessidade de compor um retrato completo, mas de dar apenas algumas pinceladas.
Juliana Leite:Poderia nos contar um pouco sobre a sua relação com as artes visuais, com a pintura? Quais materiais você usa no momento e o que tem te interessado experimentar e investigar? O que a vida de pintura significa hoje para você?
AL: Não falo muito desse “lado” meu, mas a pintura também me acompanha desde cedo e voltou a ser uma presença essencial na minha vida nos últimos oito anos, desde que minha mãe morreu. Naquela altura, as palavras começaram a não dar conta da experiência, e poder lidar com a linguagem pictórica, principalmente através da abstração, era uma forma libertadora de expressão (foi também isso que me reaproximou da poesia, que sempre escrevi, mas que só comecei a publicar em 2014: uma vontade de menos “figurativismo”). Tenho estudado com o Bernardo Magina, professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, e vejo o quanto as artes se aproximam, o quanto a pintura tem de ritmo – assim como a música e a literatura –, de harmonia, de contraste, o quanto a ideia de composição pode ter conceitos comuns a todas essas áreas. Meu material no momento é óleo sobre tela ou papel, e meus temas têm sido ideias de paisagens, paisagens mentais/espirituais. Outro dia sonhei que dizia a alguém que a escrita de poesia para mim é uma prática espiritual (da meditação). E é mesmo, e isso vale também para a pintura.
Rafael Gallo: Você conta no livro sobre como, após a morte de sua mãe, reduziu-se sua vontade de escrever prosa de ficção. Isso a levou a focar mais na poesia, em uma relação menos figurativista com o texto. Depois, com a morte de seu pai, veio o interesse pela escrita assêmica, aquela feita de formas caligráficas, porém ausente de semântica ou qualquer figurativismo textual. Entre todas essas relações com a escrita – e as que não citei − que espaço ou vontade ocupam o “Todo o tempo que existe”? Porque ele foi feito sob uma nova maneira de lidar com o texto, para você – a de um relato autobiográfico – enquanto concilia a forma em prosa, figurativista, de alguma maneira.
AL: É como se Todo o tempo que existe, para manter a analogia, fosse uma espécie de figurativismo abstrato, para mim. Porque não há o compromisso com um enredo, com uma linha narrativa, com a composição de personagens. Do mesmo modo como, naquilo a que chamamos “pintura de processo” (em oposição a “pintura de projeto”), um elemento vai “chamando” outro na composição, também nesse livro eu fiz o primeiro traço – o primeiro parágrafo – e segui dali. Por isso também me refiro a ele como um improviso, daí passando já para a referência da música: ter uma frase inicial, um tema, e compor a partir dele, mais ou menos livremente. Quando comecei a escrever esse livro, não tinha a menor ideia do que entraria nele e do que ficaria de fora, de como exatamente conduziria a narrativa nem aonde pretendia chegar.
Mariana Ianelli:Penso logo na primeira página de Todo o tempo que existe, que é a expressão de um compromisso com seu coração a uma altura da vida em que não há mais uma casa natal ao alcance das mãos e dos pés, senão a casa da lembrança (Bachelard), que lhe serve de abrigo neste mundo tantas vezes estranho e inóspito. É essa casa natal da lembrança que você vai erguendo e nos descortinando, numa escrita ao sabor da alma, que assume aí faces de filha, irmã, mãe, mulher, todas elas faces que vão se revelando por esses “fios da memória” alinhavados com a atenção do amor. Acontece também que, neste ensaio, levantando essa casa da lembrança, você nos franqueia o território primeiro e ilimitado da escritora, seu modo de pensar sentindo o mundo e de nele existir ética e poeticamente. Passam por aí seus romances e sua poesia, também atados a essa escritura da memória em aspectos de cenário, enredo ou motivo, mas sempre de maneira livre, num compromisso de expressão que é da autora com o que chamamos literatura, mas que, especialmente aqui, vai além do literário, pois recolhe o que pode haver de verdadeiramente belo e digno num ser humano dentro mesmo deste nosso cosmo e do nosso tempo comum. Numa conjunção de perdas familiares e do estado geral de coisas que hoje adoece nosso mundo, temos este livro, que vejo como despojadamente belo, comoventemente humano, verdadeiro naquele sentido fundamental da verdade de um testemunho. Como você vê este livro em relação aos outros? Recuperando o primeiro poema (“Pescaria”) do seu primeiro livro de poesia (Parte da paisagem), será que você sente que, aí, de fato, sem planejamentos, “lançou-se isca à pescaria do poema” – da vida, agora se desmentir a “real pescaria”?
AL: A “real pescaria” mata o peixe, afoga-o no ar com um anzol cravado na boca, de modo que a “pescaria do poema” gostaria de ser um acordo com a vida, com a vida possível da poesia. Todo o tempo que existe é meu livro mais despojado, despretensioso e honesto, mas não necessariamente por ser um relato autobiográfico. Cheguei num momento da vida em que as coisas já não se fazem mais visando carreira, aceitação – e isso é libertador. E tem a ver com as minhas perdas. Com os meus mortos, e a herança que eles me deixaram da própria experiência da perda brutal e iluminante. Olhar ao redor e ver a doença do mundo, e as perdas reais que temos imposto, como espécie, à biosfera, além de nossas crises políticas e éticas, é parte integrante desse luto. Uso no livro a expressão tabula rasa: “Perder alguém que se ama é fazer tabula rasa”. Existe um apagamento nesse processo, um esvaziamento daquilo que é secundário ou supérfluo, e uma busca não de essência, mas de humildade e simplicidade, das margens das coisas. A pescaria sem peixe, a pescaria dos peixinhos de papel numa festa junina. Até porque a nossa megalomania é, em grande parte, responsável pela enrascada em que nos metemos.
Edimilson de Almeida Pereira:Existem temas recorrentes na sua poesia e na sua ficção? Como você os trata em cada um desses gêneros de escrita?
AL: Há temas que me acompanham desde sempre, outros mais recentes, marcados também pelos movimentos da minha própria vida e as mudanças do mundo ao meu redor. No primeiro caso: a memória, o tempo, a transitoriedade, a morte, os afetos, a relação do humano com o não humano. No segundo: as migrações, os deslocamentos, o pertencimento. Mas talvez o “meu” tema, o guarda-chuva, seja mesmo o tempo, que acho que toca todos os outros. No caso da relação do humano com o não humano: o nosso “tempo” enquanto espécie (também no sentido musical de “andamento”) significando, entre outras coisas, a extinção de outras espécies. E também o tempo alargado ou condensado da experiência da morte ou do amor ou do enlevo (o toque do místico). E esses temas vão encontrando sua forma de expressão nos diferentes gêneros. Mais sugestivos e “fotográficos” no caso da poesia, mais espraiados e narrativos no caso da prosa, entrando na construção de enredo e personagens.
Lucia Riff:Nunca me esqueço de uma fala sua, Adriana, que muito me emocionou: questionada sobre o que seria melhor para sua carreira de escritora (escrever sua obra em português ou em inglês), você respondeu que a língua portuguesa era sua pátria. Ainda que você esteja fora do Brasil há tantos anos, seus livros continuam sendo publicados por aqui em primeira mão. Morar fora muda sua escrita, sua literatura?
AL: Acho que muda no sentido do contágio pelo outro idioma, mesmo que eu não escreva em inglês – a exatidão, a precisão da língua inglesa. Mas também o convívio mais próximo com a literatura daqui dos Estados Unidos (não em termos de vida literária, mas de leitura). Por exemplo, uma das minhas maiores influências tem sido o poeta W. S. Merwin, que foi um ambientalista, zen-budista, morador do Havaí (onde trabalhou no reflorestamento de plantações de abacaxi) e muito conhecido e premiado nos EUA, porém nunca traduzido no Brasil. Lembro-me de que nesse evento que você menciona chegamos a Caetano Veloso e àqueles belos versos, “A língua é minha pátria/ E eu não tenho pátria, tenho mátria”. Tendo perdido minha mãe (e, a esta altura, também meu pai), a língua ficou sendo também a minha mátria e a minha pátria. Adoraria que fosse também minha frátria, para seguir com Caetano nestes tempos sombrios de embate e combate.
Rafael Gallo:A relação dos leitores com um texto, e o retorno que dão a seus autores, pode ser muito curiosa. Supostamente, são devolvidas reflexões sobre o que foi escrito, mas muitas vezes podem trazer algo bastante novo para os próprios autores, algo que não estava ali para quem criou as histórias. Ter escrito sobre o que foi realmente vivido por você, que não é uma fabulação, muda essa dinâmica? O quão diferente, para você, é alguém ler, “interpretar”, ou inferir ideias sobre o que você viveu e dispôs nesse livro?
AL: Lembro de um antigo professor de pintura que olhou para um quadro meu e disse: “O quadro não está ruim, mas me preocupa o que está se passando na sua cabeça”. Então, sabe-se lá se este ensaio autobiográfico poderá suscitar alguma leitura psicanalizadora. Mas, para falar um pouco mais seriamente: o leitor já estabelece aquele famoso pacto inicial com o texto. Sendo ficção, ensaio, poesia. E a resposta da leitura é, ou pelo menos deveria ser, coerente com isso. O risco da superinterpretação, para usar o temo de Umberto Eco, sempre existe. Já tive a experiência de leitores me perguntarem o que aconteceu com determinado personagem de um romance meu depois da última página (!). E a resposta é óbvia: não sei. Há muito que também não sei em Todo o tempo que existe, porque eu não deixo de ser, em certo sentido, personagem de mim mesma, e a vida não deixa de ser uma construção que fazemos e na qual acreditamos como sendo “real”. Mais ou menos como as tantas imagens por segundo de um filme darem a ilusão de movimento. Mas, na verdade é tudo processo.
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COLUNA GABINETE DE CURIOSIDADES
RODA DE CONVERSA VIRTUAL
Convidada Adriana Lisboa
A autora Adriana Lisboa é a convidada da vez para esse novo encontro na nossa Roda de Conversa Virtual no Blog da Relicário. Nesta conversa, Adriana está rodeada por oito entrevistadores: a jornalista e conteudista Bárbara Krauss (@bdebarbarie); o escritor, poeta e professor Edimilson de Almeida Pereira; a escritora Juliana Leite; a agente literária Lucia Riff; a poeta Mariana Ianelli; a livreira Mônica Carvalho Pereira; o poeta Paulo Sabino e o escritor Rafael Gallo.
Em uma incursão totalmente nova em sua carreira literária, Adriana transformou a experiência do luto em relato autobiográfico. Seu texto é pontuado em referências zen-budistas e reflexões sobre finitude, mistério, memória, amor, lembranças familiares, o chão da terra, o verde da floresta, além das letras de autores que tanto lhe dizem nesse momento da vida.
Nesta roda, a literatura e a poesia em processo e feitura, se misturam a pintura, música, política, diferentes mundos, relações entre seres vivos e não vivos, a percepção dos leitores, a escrita como arrebatamento, paisagens.
Segunda-feira, dia 27 de junho, Adriana Lisboa autografa na Janela Livraria, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, o livro Todo o tempo que existe, em evento presencial gratuito, com conversa entre a autora e a livreira e editora Martha Ribas. E dia 28, terça-feira, é a vez em São Paulo, na Livaria da Tarde, com conversa entre a autora e a escritora e crítica literária Noemi Jaffe, e mediação de Mônica Carvalho.
Paulo Sabino: Adriana, nos seus mais recentes livros lançados pela Relicário, Deriva e O vivo, você pensou ambas as obras conceitualmente. Os livros possuem propostas claras quanto aos temas abordados. Para o Todo o tempo que existe houve também essa preocupação conceitual?
Adriana Lisboa: Todo o tempo que existe foi um livro composto de improviso. Eu lia A ridícula ideia de nunca mais te ver, da Rosa Montero, pouco após a perda do meu pai, ano passado, e uma determinada passagem me fez saltar do livro para o computador e escrever o meu ensaio num rompante, em três semanas. Foi parte do processo do luto e, como todo processo de luto, caótico. Mas no fim talvez o caos seja uma proposta conceitual também.
Mônica Carvalho Pereira: Em A louca da casa, Rosa Montero diz que escrever é expor um de seus órgãos internos e deixar que os outros lhe apontem dedos. Por outro lado, a elaboração coletiva de um luto tem se tornado mais frequente na literatura, em especial após a pandemia do coronavírus. Como você enxerga essa questão?
AL: Curiosamente, não tenho uma leitura dos textos sobre o luto produzidos nestes tempos pandêmicos. Minhas referências são, de modo geral, anteriores. E as experiências de perda estiveram, de um jeito ou de outro, presentes em muito do que escrevi até hoje – o romance Todos os santos, por exemplo, parte desse tema. A perda de alguém que se ama é radical, transformadora e íntima, mas ao mesmo tempo compartilhável, porque integra o rol das experiências humanas mais cruas e essenciais. Em toda escrita a gente se expõe de maneira brutal, como diz a Rosa. Todo o tempo que existe, porém, apesar de ser o livro em que por definição me exponho mais, é muito pouco ambicioso, então paradoxalmente me sinto menos exposta ali.
Bárbara Krauss: Todo o tempo que existe é sua primeira obra explicitamente autobiográfica: em que medida esse texto tem mais de você do que os trabalhos anteriores?
AL: Penso que tudo o que a gente escreve é, em certa medida, autobiográfico, porque parte do nosso olhar sobre o mundo e traz a nossa voz, e não tem como ser diferente. São os nossos processos mentais e de criação que estão ali no papel, mesmo num trabalho de ficção (e os temas que nos ocupam e nos preocupam). Em Todo o tempo que existe, o “eu” se assume como tal – ou seja, sou eu, Adriana, ali. Ao mesmo tempo, é um recorte transversal, do qual muita coisa fica de fora. E, no processo de selecionar, na hora da escrita, aquilo que entra no texto e aquilo que não entra, ela se torna curiosamente semelhante à escrita de ficção. Além do mais, construímos o tempo todo nossa identidade, também, com (e contra, muitas vezes) o que nos circunda.
Paulo Sabino: Quanto à sua escrita, você percebe diferença entre o Todo o tempo que existe e os demais livros que escreveu?
AL: Num certo sentido, sinto uma diferença essencial, que é o fato de que eu não “entro”, assumidamente, em nenhum dos meus livros, e Todo o tempo que existe é uma narrativa autobiográfica, embora eu tenha tentado evitar o voyeurismo de mim mesma, por assim dizer. Porém, os temas da memória, da ausência, do esquecimento, da perda, da transitoriedade, das construções que fazemos do “eu” (e da relação do humano com o não humano, que também comparece neste ensaio) me acompanham desde meu primeiro romance. Então é como se este novo livro viesse apenas tecer mais um comentário.
Mônica Carvalho Pereira: Adriana, ou seria melhor te chamar de Adrianas? São tantas… Romancista, poeta, contista, autora, musicista, palestrante, tradutora, pesquisadora. Você começou sua carreira na música. Quando a escrita te convocou a se profissionalizar e se tornou inescapável?
AL: A escrita me acompanha desde que eu era pixote – é, praticamente, paralela à leitura desde sempre. A música veio um pouco depois, no começo da adolescência. Talvez eu tenha tentado carreira em música porque ela me oferecia um pouco mais de “sociedade”, tocar e cantar em grupo versus a solidão da escrita. Mas na altura do meu recital de formatura em flauta transversa, na Uni-Rio, eu já sabia que aquilo ia ficar para trás, porque o que eu queria era escrever, e a música me tomava tempo demais. Então tentei a mão, muito canhestra, num primeiro romance, que concluí aos 26 anos e foi publicado três anos depois. Foi como me inaugurei como escritora, achando que já era uma espécie de pódio. Mal sabia que não era nem mesmo uma escada, porque num certo sentido estamos recomeçando sempre, a cada novo livro.
Edimilson de Almeida Pereira: Essa é uma pergunta conhecida, mas creio que seja importante para compreender os processos criativos de pessoas que escrevem prosa de ficção e poesia, ao mesmo tempo. De que maneira os recursos da linguagem poética interferem (se é que interferem) na sua prosa de ficção?
AL: Como a poesia faz parte da minha vida desde antes da prosa, embora eu só tenha começado a publicar poesia quinze anos depois da minha estreia como romancista, tenho a impressão de que uma atenção mais pormenorizada ao texto, à sua textura, cor, ao seu ritmo e às suas modulações é algo que herdo do convívio com os versos. Talvez também um gosto pelo silêncio, que é uma lição dos mestres japoneses de haikai, pela elipse. Na escrita de prosa, há muita coisa que fica intencionalmente de fora. Na construção de personagens, não sinto necessidade de compor um retrato completo, mas de dar apenas algumas pinceladas.
Juliana Leite: Poderia nos contar um pouco sobre a sua relação com as artes visuais, com a pintura? Quais materiais você usa no momento e o que tem te interessado experimentar e investigar? O que a vida de pintura significa hoje para você?
AL: Não falo muito desse “lado” meu, mas a pintura também me acompanha desde cedo e voltou a ser uma presença essencial na minha vida nos últimos oito anos, desde que minha mãe morreu. Naquela altura, as palavras começaram a não dar conta da experiência, e poder lidar com a linguagem pictórica, principalmente através da abstração, era uma forma libertadora de expressão (foi também isso que me reaproximou da poesia, que sempre escrevi, mas que só comecei a publicar em 2014: uma vontade de menos “figurativismo”). Tenho estudado com o Bernardo Magina, professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, e vejo o quanto as artes se aproximam, o quanto a pintura tem de ritmo – assim como a música e a literatura –, de harmonia, de contraste, o quanto a ideia de composição pode ter conceitos comuns a todas essas áreas. Meu material no momento é óleo sobre tela ou papel, e meus temas têm sido ideias de paisagens, paisagens mentais/espirituais. Outro dia sonhei que dizia a alguém que a escrita de poesia para mim é uma prática espiritual (da meditação). E é mesmo, e isso vale também para a pintura.
Rafael Gallo: Você conta no livro sobre como, após a morte de sua mãe, reduziu-se sua vontade de escrever prosa de ficção. Isso a levou a focar mais na poesia, em uma relação menos figurativista com o texto. Depois, com a morte de seu pai, veio o interesse pela escrita assêmica, aquela feita de formas caligráficas, porém ausente de semântica ou qualquer figurativismo textual. Entre todas essas relações com a escrita – e as que não citei − que espaço ou vontade ocupam o “Todo o tempo que existe”? Porque ele foi feito sob uma nova maneira de lidar com o texto, para você – a de um relato autobiográfico – enquanto concilia a forma em prosa, figurativista, de alguma maneira.
AL: É como se Todo o tempo que existe, para manter a analogia, fosse uma espécie de figurativismo abstrato, para mim. Porque não há o compromisso com um enredo, com uma linha narrativa, com a composição de personagens. Do mesmo modo como, naquilo a que chamamos “pintura de processo” (em oposição a “pintura de projeto”), um elemento vai “chamando” outro na composição, também nesse livro eu fiz o primeiro traço – o primeiro parágrafo – e segui dali. Por isso também me refiro a ele como um improviso, daí passando já para a referência da música: ter uma frase inicial, um tema, e compor a partir dele, mais ou menos livremente. Quando comecei a escrever esse livro, não tinha a menor ideia do que entraria nele e do que ficaria de fora, de como exatamente conduziria a narrativa nem aonde pretendia chegar.
Mariana Ianelli: Penso logo na primeira página de Todo o tempo que existe, que é a expressão de um compromisso com seu coração a uma altura da vida em que não há mais uma casa natal ao alcance das mãos e dos pés, senão a casa da lembrança (Bachelard), que lhe serve de abrigo neste mundo tantas vezes estranho e inóspito. É essa casa natal da lembrança que você vai erguendo e nos descortinando, numa escrita ao sabor da alma, que assume aí faces de filha, irmã, mãe, mulher, todas elas faces que vão se revelando por esses “fios da memória” alinhavados com a atenção do amor. Acontece também que, neste ensaio, levantando essa casa da lembrança, você nos franqueia o território primeiro e ilimitado da escritora, seu modo de pensar sentindo o mundo e de nele existir ética e poeticamente. Passam por aí seus romances e sua poesia, também atados a essa escritura da memória em aspectos de cenário, enredo ou motivo, mas sempre de maneira livre, num compromisso de expressão que é da autora com o que chamamos literatura, mas que, especialmente aqui, vai além do literário, pois recolhe o que pode haver de verdadeiramente belo e digno num ser humano dentro mesmo deste nosso cosmo e do nosso tempo comum. Numa conjunção de perdas familiares e do estado geral de coisas que hoje adoece nosso mundo, temos este livro, que vejo como despojadamente belo, comoventemente humano, verdadeiro naquele sentido fundamental da verdade de um testemunho. Como você vê este livro em relação aos outros? Recuperando o primeiro poema (“Pescaria”) do seu primeiro livro de poesia (Parte da paisagem), será que você sente que, aí, de fato, sem planejamentos, “lançou-se isca à pescaria do poema” – da vida, agora se desmentir a “real pescaria”?
AL: A “real pescaria” mata o peixe, afoga-o no ar com um anzol cravado na boca, de modo que a “pescaria do poema” gostaria de ser um acordo com a vida, com a vida possível da poesia. Todo o tempo que existe é meu livro mais despojado, despretensioso e honesto, mas não necessariamente por ser um relato autobiográfico. Cheguei num momento da vida em que as coisas já não se fazem mais visando carreira, aceitação – e isso é libertador. E tem a ver com as minhas perdas. Com os meus mortos, e a herança que eles me deixaram da própria experiência da perda brutal e iluminante. Olhar ao redor e ver a doença do mundo, e as perdas reais que temos imposto, como espécie, à biosfera, além de nossas crises políticas e éticas, é parte integrante desse luto. Uso no livro a expressão tabula rasa: “Perder alguém que se ama é fazer tabula rasa”. Existe um apagamento nesse processo, um esvaziamento daquilo que é secundário ou supérfluo, e uma busca não de essência, mas de humildade e simplicidade, das margens das coisas. A pescaria sem peixe, a pescaria dos peixinhos de papel numa festa junina. Até porque a nossa megalomania é, em grande parte, responsável pela enrascada em que nos metemos.
Edimilson de Almeida Pereira: Existem temas recorrentes na sua poesia e na sua ficção? Como você os trata em cada um desses gêneros de escrita?
AL: Há temas que me acompanham desde sempre, outros mais recentes, marcados também pelos movimentos da minha própria vida e as mudanças do mundo ao meu redor. No primeiro caso: a memória, o tempo, a transitoriedade, a morte, os afetos, a relação do humano com o não humano. No segundo: as migrações, os deslocamentos, o pertencimento. Mas talvez o “meu” tema, o guarda-chuva, seja mesmo o tempo, que acho que toca todos os outros. No caso da relação do humano com o não humano: o nosso “tempo” enquanto espécie (também no sentido musical de “andamento”) significando, entre outras coisas, a extinção de outras espécies. E também o tempo alargado ou condensado da experiência da morte ou do amor ou do enlevo (o toque do místico). E esses temas vão encontrando sua forma de expressão nos diferentes gêneros. Mais sugestivos e “fotográficos” no caso da poesia, mais espraiados e narrativos no caso da prosa, entrando na construção de enredo e personagens.
Lucia Riff: Nunca me esqueço de uma fala sua, Adriana, que muito me emocionou: questionada sobre o que seria melhor para sua carreira de escritora (escrever sua obra em português ou em inglês), você respondeu que a língua portuguesa era sua pátria. Ainda que você esteja fora do Brasil há tantos anos, seus livros continuam sendo publicados por aqui em primeira mão. Morar fora muda sua escrita, sua literatura?
AL: Acho que muda no sentido do contágio pelo outro idioma, mesmo que eu não escreva em inglês – a exatidão, a precisão da língua inglesa. Mas também o convívio mais próximo com a literatura daqui dos Estados Unidos (não em termos de vida literária, mas de leitura). Por exemplo, uma das minhas maiores influências tem sido o poeta W. S. Merwin, que foi um ambientalista, zen-budista, morador do Havaí (onde trabalhou no reflorestamento de plantações de abacaxi) e muito conhecido e premiado nos EUA, porém nunca traduzido no Brasil. Lembro-me de que nesse evento que você menciona chegamos a Caetano Veloso e àqueles belos versos, “A língua é minha pátria/ E eu não tenho pátria, tenho mátria”. Tendo perdido minha mãe (e, a esta altura, também meu pai), a língua ficou sendo também a minha mátria e a minha pátria. Adoraria que fosse também minha frátria, para seguir com Caetano nestes tempos sombrios de embate e combate.
Rafael Gallo: A relação dos leitores com um texto, e o retorno que dão a seus autores, pode ser muito curiosa. Supostamente, são devolvidas reflexões sobre o que foi escrito, mas muitas vezes podem trazer algo bastante novo para os próprios autores, algo que não estava ali para quem criou as histórias. Ter escrito sobre o que foi realmente vivido por você, que não é uma fabulação, muda essa dinâmica? O quão diferente, para você, é alguém ler, “interpretar”, ou inferir ideias sobre o que você viveu e dispôs nesse livro?
AL: Lembro de um antigo professor de pintura que olhou para um quadro meu e disse: “O quadro não está ruim, mas me preocupa o que está se passando na sua cabeça”. Então, sabe-se lá se este ensaio autobiográfico poderá suscitar alguma leitura psicanalizadora. Mas, para falar um pouco mais seriamente: o leitor já estabelece aquele famoso pacto inicial com o texto. Sendo ficção, ensaio, poesia. E a resposta da leitura é, ou pelo menos deveria ser, coerente com isso. O risco da superinterpretação, para usar o temo de Umberto Eco, sempre existe. Já tive a experiência de leitores me perguntarem o que aconteceu com determinado personagem de um romance meu depois da última página (!). E a resposta é óbvia: não sei. Há muito que também não sei em Todo o tempo que existe, porque eu não deixo de ser, em certo sentido, personagem de mim mesma, e a vida não deixa de ser uma construção que fazemos e na qual acreditamos como sendo “real”. Mais ou menos como as tantas imagens por segundo de um filme darem a ilusão de movimento. Mas, na verdade é tudo processo.
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